O problema da organização do Estado de modo a fazer promanar a sua autoridade de fontes em contato com as forças reais da sociedade, apresenta evidentemente dificuldades que ainda não foram satisfatoriamente resolvidas em nenhum caso nacional que se examine. O conceito vulgar do governo democrático constituído sobre a base majoritária constituído sobre a base majoritária não resiste à análise racional dos seus aspectos concretos. As próprias ideias de governo e de origem do poder no conjunto aritmético das vontades dos que devem ser governados são coisas contraditórias e logicamente irreconciliáveis. Aliás, o princípio majoritário na forma pela qual o aplica a democracia baseada no sufrágio promíscuo originou-se como simples expressão simbólica de uma noção mais profunda e muito mais objetiva da realidade social e política.
Os ingleses criadores das instituições democráticas ulteriormente transplantadas para outros ambientes raciais e sociais, achavam-se em condições peculiares à utilização vantajosa de um método de organização política, que fora daquelas condições não podia de modo algum dar análogos resultados. O autor destas linhas julga ter demonstrado (“O Brasil na Crise Atual” — Rio de Janeiro, 1934) que o êxito das instituições democráticas entre os povos anglo-saxônicos e de um modo geral entre as nações nórdicas só foi possível em consequência de traços psicológicos especiais, que tornam aqueles grupos humanos naturalmente inclinados a uma espontânea organização hierárquica, que assegura a obediência às realidades sociais no emprego formal de métodos representativos, só adaptáveis a povos dotados dessa mentalidade.
Na prática não existe na Inglaterra, nos Estados Unidos, nas nações escandinavas e na Alemanha o sufrágio promíscuo como ele se apresenta na teoria da democracia liberal. Os indivíduos organizam-se em grupos coordenados por interesses econômicos, identidades ideológicas e aspirações nitidamente diferenciadas. Em cada um desses grupos as massas que os constituem aceitam implicitamente a chefia intelectual e política de elementos superiores que exercem ação dirigente partidária em termos de um comando absolutamente eficiente. Assim, sob a forma aparente da democracia majoritária, o que existe na Inglaterra, nos Estados Unidos, nos países escandinavos e na Alemanha foi sempre e continua a ser um governo em última análise nitidamente aristocrático. Isto é, uma forma de organização política e de representação nacional baseada na aceitação implícita pelas massas da ação condutora dos chefes que exercem uma liderança espiritual indiscutível e exercem essa autoridade de guias por meio de um complexo e eficaz aparelho de propaganda, que não é senão a maquinaria por meio da qual se transmitem as ordens de comando aos que voluntariamente aceitam a autoridade dirigente deste ou daquele chefe.
Nos países latinos o psiquismo das multidões tornando-as incapazes de uma voluntária aceitação da autoridade de chefes partidários, a democracia do sufrágio promíscuo tem fracassado, como logicamente se podia prever. Em tais circunstâncias, o processo de origem do poder do Estado tem forçosamente de ser diferente, para que se estabeleça uma coordenação real e eficaz entre as forças vivas da sociedade e o organismo de sua direção política. Os indivíduos isolados e desorganizados não constituem elementos de força social. Esta existe apenas na associação dos interesses de cada grupo especializado em uma forma particular de atividade material ou espiritual.
Daí a ideia do Estado corporativo, isto é, do Estado constituído pelos elementos promanados dos grupos econômicos e espirituais adequadamente organizados em formação sindicais. Não seria possível desenvolver nestas linhas ideias que aliás já têm sido amplamente assimiladas pelos leitores desta revista. Mas basta dizer que fora da organização corporativa não é possível nos países onde as condições psicológicas não permitem o funcionamento das instituições da democracia representativa na sua modalidade anglo-saxônica e nórdica, organizar a sociedade de forma estável fora do conceito corporativista. A experiência secular do sufrágio promíscuo redundou nos países latinos na ataxia política característica do momento atual, com as suas perturbadoras possibilidades de uma escolha entre o despotismo e a anarquia.
Sem poder nos limites deste curto artigo examinar os inúmeros fascinantes aspectos do problema da organização do Estado corporativo, focalizarei apenas uma questão que se me afigura de capital importância e de extraordinária atualidade. O Estado corporativo, como eu o imagino e como aliás me parece deve ser concebido por todos que dele formam uma ideia clara, tem de ser a projeção da vontade política da sociedade organizada em núcleos sindicais. Estes representam os centros orgânicos e hierarquizados das energias ativas da coletividade. E deles irradiam os elementos que como expoentes dessas energias vão constituir o órgão de direção autoritária da comunidade nacional.
Das corporações é que emerge o Estado, e o grande perigo do corporativismo no momento atual consiste a meu ver na tendência à inversão dessa ordem lógica de origem da autoridade política. Um corporativismo decorrente da autoridade do Estado, como o que se organiza por exemplo na Itália, em vez de redundar no autêntico Estado corporativo vai reduzir os sindicatos a meros tentáculos do poder absorvente e perigosamente despótico de um Estado totalitário. Em vez de ser a expressão organizada e portanto hierarquizada da vontade política das forças ativas da sociedade como deve acontecer no verdadeiro Estado corporativo, o poder político torna-se o centro de origem e a única força efetiva de autoridade na sociedade.
Resumindo e apenas focalizando a correr pontos capitais desse assunto, encerrarei estas linhas chamando a atenção para uma questão essencial. Um autêntico Estado corporativo só pode ser organizado após o prévio estabelecimento de uma sólida e fortemente vitalizada organização sindical. O erro fundamental das experiências de corporativismo que ora se tentam no mundo consiste a meu ver na ilusão de que das ditaduras possa emergir o Estado corporativo por meio de uma espécie de criação burocrática de um corporativismo fictício e desvitalizado. O Estado corporativo deverá ter uma gênese diametralmente oposta. A sua formação terá de ser centrípeta, partindo do exercício da vontade política de núcleos sindicais fortemente organizados e articulados entre si por uma vigorosa ideia nacional.
Autor: Azevedo Amaral. Retirado de “Panorama”, 1936, n.º 11. págs. 18-19-20.