Em seus estudos sobre a representação proporcional, o Professor Ferdinand A. Hermens, grande conhecedor dos problemas econômicos e políticos do nosso tempo, demonstrou como foi aquele sistema eleitoral que tornou possível o sucesso dos fascistas na Itália e o triunfo de Hitler na Alemanha.[1]
Mas era apenas o sistema da representação proporcional que vinha, no dizer do ilustre autor de Democracy or Anarchy?, minar a democracia e destruir a unidade nacional.
Sob alguns aspectos, o princípio majoritário pode oferecer suas vantagens incontestáveis, mas se formos ao fundo das coisas, teremos de concluir que o mal vem de mais longe. Está no próprio regime de partidos, seja com a representação proporcional ou com a majoritária. Está no sufrágio universal individualista e orgânico, que, aliás, com o sistema da maioria, apresenta em toda a plenitude o absurdo da “metade mais um” como critério da verdade política.
É o que muitos, hoje, já percebem em face da desmoralização dos partidos e do espetáculo degradante das assembleias legislativas. Percebem, mas receiam admitir, com medo de serem acusados de favorecer a ditadura. Não veem outra saída e acabam por aceitar o que está. Alguns retiram-se enojados da vida política, enquanto outros, com muito boa vontade mas inteiramente desiludidos, procuram salvar a vida de um doente atacado de moléstia incurável.
É um erro pensar que o regime de partidos é da essência da democracia, como se não fosse possível uma ditadura do partido único a não ser por meio da pluralidade partidária.
Nada mais falso. Os partidos podem ser indispensáveis num determinado tipo de democracia, não em todos. Na democracia liberal individualista, surgem como órgãos de expressão da opinião pública, que não só devem representá-la como também orientá-la. Dissolvidos os órgãos naturais de representação da sociedade, os agrupamentos intermediários entre a família e o Estado, aparecem os partidos para substituí-los.
Pois aí está o ponto de que muitos se esquecem. Por que não substituir a representação partidária pela representação corporativa?
A representação feita através dos partidos é inexpressiva e fictícia. Os quadros partidários não correspondem à organização natural da sociedade que visam representar. Constituem uma excrescência. Há casos que poderiam ser apontados como exceções, por exemplo o da Inglaterra. Entretanto, não nos devemos esquecer de que os partidos ingleses se acham intimamente ligados a determinadas classes ou grupos sociais. Como se poderia compreender o desenvolvimento do Partido Trabalhista sem a base sindical do trade-unionismo? E o Partido Conservador não tira sua força das chamadas classes conservadoras e do elemento aristocrático?
Os partidos repartem e dividem, comprometem a unidade nacional, enfraquecem o poder. Acentuam o antagonismo dos interesses, ao invés de harmonizá-los. Semeando ideologias extremadas, subvertem a ordem social.
A sociedade política não é constituída por indivíduos solitários, que devem agrupar-se em partidos conforme as suas tendências ou opiniões. Eles já estão agrupados naturalmente na sociedade. A formação histórica do Estado dá-se através de famílias, cidades, grupos econômicos e outras entidades coletivas que se reúnem sob uma autoridade comum.
Constituído o Estado, esses agrupamentos não desaparecem. Só poderiam desaparecer na mente doentia de um Rousseau ou nos golpes legislativos inspirados pelos ideólogos da revolução anti-francesa de 1789.[2]
Se tal é, portanto, a constituição natural da sociedade, e se o governo representativo colima dar a todo o povo representação junto ao Estado, de duas uma: ou serão representados os grupos naturais e históricos, ou a representação será uma burla.
Há pouco mais de dez anos, em prefácio à tradução da obra de Roger Bonnard Sindicalismo, Corporativismo e Estado Corporativo, escrevia Themístocles Cavalcanti: “Ninguém hoje terá mais o fetichismo das velhas fórmulas da representação direta do povo como o único processo para a constituição de uma estrutura democrática e representativa”.[3]
Esse fetichismo parece ter voltado depois da última guerra, e arriscam-se a passar por fascistas quantos venham falar em representação corporativa nos dias de hoje.
A verdade é que o fascismo não foi mais do que uma grosseira deturpação do princípio corporativo, tal como era conhecido e aplicado por muitos povos antes de terem vindo os “imortais princípios” de 1789 estabelecer o conflito entre um direito público construído de abstrações e a tradição viva das sociedades.
Corruptio optimi pessima… diziam os velhos filósofos. O Estado corporativo fascista corrompeu o corporativismo, cujos princípios lhe são muito mais antagônicos que os próprios princípios da liberal-democracia. Sim, porque não foi apenas de fato, na Alemanha, na Itália e noutros países, que a democracia preparou o Estado totalitário, particularmente quando organizada eleitoralmente sob o sistema da representação proporcional, conforme a tese de Hermens. Foi também pelos seus princípios, pela maneira de organizar a sociedade segundo tais princípios, que o Estado democrático moderno abriu as portas para o totalitarismo.
O Estado liberal, de início, reduz ao mínimo as suas funções. É por isso chamado Estado-jurídico. Só cuida de tutelar o direito. Entretanto, é já o Estado centralizador. Exerce o monopólio da vida jurídica, negando a capacidade normativa dos grupos. Abolindo as corporações de ofício e sufocando a autonomia municipal, consumou a centralização político-administrativa que o levaria aos poucos a exercer uma série de outras funções usurpadas dos grupos e dos próprios indivíduos. Vamos descendo uma rampa do liberalismo para o socialismo de Estado, até chegar ao Estado totalitário.
O regime corporativo, pelo contrário, significa a defesa das liberdades concretas dos grupos sociais contra as invasões prepotentes do Estado na sua esfera de ação, e ao mesmo tempo a representação eficaz de tais grupos junto aos poderes públicos. É uma barreira ao absolutismo de Estado. É uma garantia da iniciativa privada. É o reconhecimento do poder autárquico dos grupos sociais.[4]
Por isso mesmo, no Congresso dos Economistas da língua francesa em 1936, considerava-se o corporativismo o fruto de uma reação contra três fenômenos contemporâneos, a saber:
- Contra a desordem proveniente do liberalismo;
- Contra o estatismo;
- Contra a teoria da luta de classes.[5]
Com efeito, o corporativismo substitui o princípio da “liberdade abandonada” pelo da “liberdade sob a ordem”, a anarquia da livre concorrência pela organização da produção e do comércio. É, pois, um corretivo à desordem liberal.
Além disso, descentraliza as funções do Estado, distribuindo-as pelas autoridades corporativas. O próprio termo “descentralizar” sai-nos ao correr da pena, de tal modo andamos habituados a uma linguagem corrente em nossos dias e que aliás resulta da situação atual da totalidade dos Estados. Depois de terem passado ao poder político um grande número das funções exercidas pelos grupos sociais, devolver essas funções àqueles que de direito as detinham é efetivamente uma descentralização. Entretanto, essa palavra dá a ideia de que o Estado delega atributos que lhe são próprios, quando se trata de restituir aos grupos funções usurpadas pelo poder político. Com essa restituição, o corporativismo dá um golpe de morte no estatismo totalitário já contido na democracia liberal.
Finalmente, a doutrina corporativista é antípoda da teoria socialista da luta de classes — que decorre do sistema da livre concorrência — pois faz preponderar sobre a concorrência e a luta dos interesses a cooperação das profissões organizadas.
O corporativismo se limita à organização das profissões econômicas em âmbito político, enquanto forma de representação dos grupos econômicos e de outros grupos no Estado. Trata-se, pois, de uma concepção de representação popular diversa da concepção democrático-liberal dos partidos políticos dominantes no direito público individualista hoje em plena crise. Uma concepção nova para o direito político a que estamos habituados, mas que teve outrora sua realização, nas Côrtes de Portugal e Espanha, nos Estados Gerais da França, nas Dietas germânicas, ou no Parlamento inglês, cuja existência é muito anterior à do Partido Conservador ou do Partido Trabalhista.
Claro está que não se trata de voltar ao passado. Ninguém pensaria em restabelecer hoje as corporações medievais, os mestres cuja agremiação obedecia às circunstâncias da época, tão diversas das de hoje. As condições do trabalho são muito outras. Da pequena indústria manufatureira à grande indústria cada vez mais transformada pela técnica, toda uma longa evolução social determinou situações novas, a se levar em conta no caso de uma restauração corporativa. Mas o princípio corporativista permanece o mesmo, podendo adaptar-se a estas situações e revestir modalidades diferentes.
Em que consiste esse princípio?
Simplesmente em reconhecer que o homem é um ser social, que só se enquadra na sociedade humana por intermédio dos grupos particulares.[6]
Daí decorre a representação corporativa. Sendo o Estado formado por grupos, não diretamente por indivíduos, segue-se que a representação da sociedade deve vir por base os grupos, não os indivíduos.
Dizia o grande tribuno espanhol Vazquez de Mella que o regime parlamentar de base partidária individualista é um cadáver insepulto a devorar as entranhas dos povos latinos. E discorrendo sobre as vantagens do regime corporativo, acrescentava:
“O indivíduo é um resíduo daquelas doutrinas do século XVIII, as quais o imaginavam, nos primitivos momentos da História, aparecendo e saindo de uma selva para celebrar contratos com outras tribos e outros homens. Esse indivíduo nunca existiu em parte alguma… O que se deve representar é o homem de classe e de grupo; e como as classes são categorias sociais que permanecem, e não podem ser negadas sem que se negue a nação, é necessário que essas forças estejam representadas nas Cortes. É necessário que ali estejam os interesses de que vos falei; o interesse religioso e moral, representado pelo clero; o interesse docente, intelectual, representado pelas corporações científicas, pelas universidades e academias; o interesse material, representado pelo comércio, pela indústria, pela agricultura, pelos operários; o interesse da defesa, representado pelo exército; e o interesse das superioridades, daquelas autoridades sociais que formam a aristocracia de todos: os méritos científicos, artísticos, da tradição, da virtude, que, ainda saindo das camadas inferiores, têm direito a brilhar nas alturas. Quando o Parlamento representar todas essas forças, então será o espelho da sociedade, e não se dará esse caso oprobrioso, prova de que não são representativos os parlamentos modernos, de que no caso de uma crise agrícola ou industrial a primeira medida dos partidos que formam o Parlamento é procurar uma informação pública, para inteirar-se do que se passa lá fora”.[7]
O mesmo Vazquez de Mella nota que nos tempos atuais o princípio corporativo deve ser aplicado levando-se em conta a maneira pela qual estão constituídas as classes. Assim é que a aristocracia perdeu o vigor e a força de outrora, enquanto a indústria e o comércio adquiriram imenso desenvolvimento. No Brasil, vemos como as entidades de classe procuram entrosar-se na vida política da melhor forma para atender a seus legítimos interesses. Muitas vezes são forçadas a terem seus representantes credenciados junto aos partidos. E frequentemente dão exemplo de um labor intenso e produtivo aos parlamentos estéreis. Basta lembrar as conferências de Teresópolis e Araxá. Quando teremos essas entidades representadas junto ao Estado sem a excrescência perturbadora dos quadros partidários? E quando veremos, ao seu lado, gozando de uma justa e salutar autonomia, outros grupos corporativos tantas vezes prejudicados pela ação do Estado centralizador, tais como a Universidade e a Magistratura?
Como nota Marcel Prélot, as decisões políticas não podem hoje isolar-se do econômico e do social. Eis porque às corporações, devidamente organizadas, além do poder normativo e disciplinar interno, das faculdades tributárias, das atribuições jurisdicionais e de uma grande parte na gestão da coisa pública, deve ser também reconhecido o direito de representação junto à autoridade do Estado.
Não se trata de uma diarquia político-corporativa, uma repartição do poder do Estado. Os órgãos corporativos não devem constituir total ou parcial mente os órgãos do governo. Mas assim como a autoridade corporativa cumpre agir, com toda liberdade, na esfera que lhe pertence, sob fiscalização geral do poder político, encarregado do bem comum, assim também o poder político deve, por sua vez, agir consultando os órgãos que representem os interesses corporativos.[8]
Colaborando assim nas decisões políticas do Estado, teriam as classes mais eficazmente assegurados os seus interesses do que num regime dispersivo, instável e arbitrário como é o dos parlamentos de base partidária.
Os que defendem a pluralidade de partidos, a fim de não cair no partido único e na ditadura, esquecem-se da solução mais eficaz para nos libertar definitivamente da tirania totalitária e do Estado opressivo e centralizador: a restauração corporativa.
Isso exige antes de mais nada uma revisão dos conceitos há mais de um século dominantes no direito público. Mas quem poderá iludir-se sobre a precariedade da sistemática jurídica vigente na maioria dos povos de hoje?…
Autor: José Pedro Galvão de Sousa, Digesto Econômico, ano VII, nº 76, março/1951, pp. 10-1
Notas:
[1] FERDINAND A. HERMENS, Democracy and Proportional Representation, in Public Policy Pamphlets, 1940; Democracy or Anarchy?, University of Notre Dame, Indiana, 1941.
[2] Há uma curiosa modalidade de “golpes” políticos, cuja técnica se reveste de suma perfeição, pois ninguém os percebe. Consiste em impingir constituições jurídicas avessas à constituição histórica de um povo, constituições que, em nome da liberdade abstrata do cidadão, violam as liberdades concretas dos homens.
[3] R. BONNARD, Sindicalismo, Corporativismo e Estado Corporativo, tradução brasileira com prefácio e anotações de THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, Livraria Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1938, p. 15.
[4] Como E. Gil Robles no seu Tratado de Direito Político, toma-se aqui a palavra “autarquia” no sentido aristotélico, designando a capacidade para se governar a si próprio reconhecida pelo direito.
[5] Apud THEMISTOCLES CAVALCANTI, prefácio da obra citada, p. VII.
[6] J. BRETHE DE LA GRESSAYE, La Corporation et l’État, in Archives de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, n.º 1/2, 1938, p. 79.
[7] J. VAZQUEZ DE MELLA, Obras Completas, vol. XXII, p. 347.
[8] Veja-se, nesse sentido, o interessante curso de M. PRELOT, L’intégration des organes corporatifs dans l’État, contribuição do ilustre professor da Faculdade de Direito e de Ciências Políticas da Universidade de Estrasburgo à XXVII.ª sessão das Semanas Sociais de França (1935), publicada em L’Organisation Corporative, ed. Chronique Sociale de France, J. Gabalda-E. Vitte, Paris-Lyon, p. 363 e seguintes.