Os imperativos da política brasileira

A economia brasileira nasceu no seio do comércio, na exportação da matéria-prima para vários países do mundo e, após algum tempo, internamente, entre diferentes regiões. E, não à toa, as primeiras associações de representação por meio do trabalho também nasceram nesse meio, como associações comerciais.

Entretanto, para entender a influência de organizações de cunho corporativo no Brasil, é necessário antes contextualizar um panorama da cultura política brasileira.

No rol dos sociólogos brasileiros, Oliveira Vianna foi um dos maiores exploradores do culturalismo. Seus estudos foram e ainda são significativos quando se fala em cultura nacional. É dele a marcante frase “Nós não somos senão uma coleção de almas, que nos vêm do infinito do tempo.” 

O estudo de Vianna não só é importante no estudo da cultura política brasileira, mas também na social. Aquela, afinal de contas, é um reflexo desta.

O período colonial proporcionou ao Brasil um desenvolvimento cultural peculiar: Portugal manteve um controle não muito rígido sobre o Brasil. A comunicação era fraca até porque, desde a expulsão dos Holandeses, não havia necessidade de um sistema desenvolvido de cooperação e desenvolvimento simétrico nacional. A instituição que manteve o monopólio das iniciativas de desenvolvimento e proteção da sociedade foi a família. Num sistema quase feudal, a família, como instituição social de direito privado, era páreo somente para a Igreja, que mantinha grande influência naquele tempo, mas que foi grandemente afetada pela eventual expulsão dos jesuítas do Brasil.

Foi nesse sentido que a família se expandiu ainda mais, em uma tradição que pode ser vista no interior ainda até hoje, e que, até pelo menos o século XIX, suprimiu a necessidade de desenvolvimento de agremiações comerciais ou comunais.

Vianna classifica, basicamente, as dimensões do clã familiar brasileiro em feudais e parentais. A faceta feudal do clã familiar é composto por relações verticais entre o patriarca e seus dependentes, como escravos, serventes e empregados. Até mesmo pequenos agricultores próximos ao domínio patriarcal achavam necessário a submissão à sua jurisdição

Já a dimensão parental do clã é baseada nas relações inter-elites, por meio de parcerias, casamentos e adoções, composta majoritariamente em relações horizontais entre as elites familiares.

A partir das vertentes parentais e feudais do clã, surge um terceiro componente, o clã eleitoral, este, diferentemente daqueles, elemento de direito público, e não privado, como os clãs parentais e feudais.

Foram estes aspectos da família que, durante o maior período de nossa história, influenciaram a formação de nossa cultura social e política. A família permaneceu atuando nestes meios com igual ou mais intensidade que o aparelho estatal, unindo-se com ele quando alguma eleição tomava parte, por exemplo. A estrutura político-organizacional brasileira não foi mais que uma extensão da política familiar.

A situação permaneceu mais ou menos a mesma, desde o tempo colonial, até bem além da Proclamação da República, especialmente nos sertões do nordeste.

É possível verificar que a formação da cultura nacional é muito diferente da de outras nações. A flexibilidade e a liberdade possibilitadas às instituições de direito privado permitiu aos mais diversos povos coexistirem sem grandes problemas de organização, levando à mistura de uma grande variedade de culturas ameríndias, europeias e africanas.

O panorama do desenvolvimento social brasileiro demonstra bem o fato: desigualdade social entre regiões, costumes políticos locais — muitos adaptados desse sistema que era presente até não muito tempo atrás. O impacto da cultura política brasileira baseada na autoridade inquestionável do pater familias, no personalismo, na submissão de todos aqueles dentro dos clãs feudais e parentais demonstra a passividade do brasileiro contemporâneo à política. Miguel Reale coloca a cultura como “sistema de intencionalidades humanas historicamente tornadas objetivas através da história, ou, por outras palavras, a objetivação e objetivização histórica das intencionalidades no processo existencial”.

São estes costumes que foram praticados por tanto tempo que seus efeitos estão presentes até os dias presentes. A tibieza, o desinteresse, o voto inconsequente, todos estes são elementos que demonstram que o povo brasileiro nunca esteve preparado para eleger ninguém diretamente, especialmente dentro de um sistema naturalmente propenso à corrupção e ao personalismo como a liberal-democracia. Pode-se afirmar, aliás, que uma certa ausência de conhecimento e valores sociais e políticos pode ser atribuída tanto à cultura quanto ao problema educacional que persiste no Brasil.

Eis aí as duas vertentes que fazem parte do dilema da cultura política brasileira: a formação intelectual de nossos estadistas, baseadas em realidades que não as nossas, e a cultura baseada no familiarismo, no personalismo e na troca de favores. De acordo com Goffredo Telles Jr., em seu artigo “Lineamentos de uma Democracia Autêntica para o Brasil”:

“Os três Andradas — JOSÉ BONIFÁCIO, ANTÔNIO CARLOS, MARTIM FRANCISCO — FEIJÓ, CAMPOS VERGUEIRO, LEDO, JOSÉ CLEMENTE, BARATA, COUTINHO, HIPPOLYTO DA COSTA, CAYRU, QUELUZ, MARICA, EVARISTO, CARAVELLAS, BAEPENDY, SÃO LEOPOLDO, ABRANTES, VASCONCELLOS, MONTE ALEGRE, OLINDA e tantos outros, arautos de nossa independência política e doutrinadores de nossa ordenação constitutional, todos eles, sem exceção nenhuma, receberam o batismo indelével do pensamento europeu.”

Mesmo com os avanços acadêmicos no Brasil, aqueles que se formaram no velho continente ainda tiveram mais relevância na formação política brasileira que aqueles que se baseavam no estudo direto da realidade nacional. Em suma: as ideias dos teóricos do primeiro mundo eram mais influentes aqui do que as análises da realidade sócio-política presente.

Oliveira Vianna, ao relatar a influência das obras de Rui Barbosa e de Alberto Torres na política brasileira, coloca:

“O que realmente contribuiu para que Torres não conseguisse, no seu tempo, uma ascendência comparável à que tinha Rui foi precisamente o fato de que, na sua doutrinação e nas suas obras, Torres nunca se apoiava em ninguém, nunca citava autores estrangeiros, limitando as suas leituras a uma biblioteca reduzidíssima, que só nós, seus amigos de intimidade, conhecíamos, mas que, ainda assim, não aparecia nos seus livros.”

As décadas de 1920 e 1930 na História do Brasil trouxeram algumas mudanças em relação a situação cultural. Os estudos de Oliveira Vianna e, anteriormente, de Alberto Torres, revelaram alguma consciência de que a nação brasileira não havia, até então, construído um modelo político que se adequasse a sua realidade. Os modelos até então liberais, importados de outros países, demonstraram certo fracasso quando implementados em uma sociedade onde a cultura política tinha uma forma personalista, sendo, durante muito tempo, um emaranhado de famílias.

As mudanças que se sucederam nas referidas décadas são curiosas: o ideal do anarquismo popularizado entre trabalhadores imigrantes começou a se manifestar na sociedade brasileira, e foi ainda mais difundido com a fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922. Neste mesmo período, populariza-se também os ideais nacionalistas e católicos, com alguns de seus expoentes sendo o já mencionado Alberto Torres e Jackson de Figueiredo. Fato curioso este, em razão de ser aparentemente espontâneo.

Essa mudança de foco entre alguns dos intelectuais brasileiros alterou o ritmo do desenvolvimento do sistema de representação. Especialmente a corrente nacionalista e católica, desenvolveu uma tendência a favor de um nacionalismo cristão e corporativista. Pode-se dizer com certa segurança que as duas agremiações que mais propagaram e nutriram estes ideais entre os brasileiros foram a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Ação Imperial Patrianovista Brasileira (AIPB). Algumas elites favoráveis ao governo de Getúlio Vargas se deleitaram com escritos traduzidos de Maniloesco e da Carta del Lavoro.

O desenvolvimento de um modelo de Estado corporativo formado aos moldes das necessidades e características da política brasileira deu-se através da AIB. Vargas, em seu governo, executou algumas medidas de facilitação e de incentivo à representação sindical como uma espécie de uma iniciativa à um remoto “corporativismo”, enquanto o que a AIB e a AIPB desenvolveram eram medidas reais de corporativismo, onde o esquema representativo conseguia ser um esquema democrático bem estruturado e orgânico.

Autor: João Guilherme.

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