Autoritarismo e Partidarismo

A liberal-democracia é um regime em completa crise. Está na mais evidente falência, nunca esteve tão impopular entre as massas e, cada vez mais, se tornam necessárias novas formas de gerir a vida nacional. Mas qual é uma das principais razões da democracia liberal ser um regime, em essência, tão divisivo, ineficiente e contraditório? Cada regime político tem uma base a se assentar. É inadmissível um demoliberalismo sem partidos, sem partidocracia. Então, para se chegar ao cerne do problema, é necessário fazer uma profunda análise da fisionomia dos partidos políticos.

O Partidarismo

Os partidos são a base comum da democracia liberal. Sendo um regime essencialmente divisionista, é necessário a existência de diferente setores da sociedade que defendam distintas posições ideológicas e programáticas acerca de como reger a sociedade. Não é necessário um exame de consciência muito profundo para perceber a contradição interna do sistema. Em um regime demoliberal, não é incomum encontrar Partidos Comunistas, que defendem abertamente a destruição dos valores pátrios. O regime é simplesmente incapaz de defender a Nação e seus interesses. Não apenas isso. O modelo partidário é necessariamente um “governo de entrave”. Raramente encontra-se consenso na tirania dos partidos. O mais distintos partidos nunca irão concordar entre si, pois isso significaria “abaixar a guarda” para adversários. O partido age em prol de sua própria causa, age em benefício de suas próprias crenças e dogmas políticos.

Também não é nenhuma novidade o caráter artificial da falsa democracia partidária. A existência dos partidos é extremamente injustificada no imaginário brasileiro. As legendas são impostas a qualquer candidato que deseje disputar cargos públicos, impossibilitando a existência de independentes. Lamounier e Meneguello afirmam que “[…] o antipartidarismo pode ser considerado um traço marcante da cultura política brasileira. Na consciência social e na linguagem jornalística, são hiperabundantes as referências ao “artificialismo” e à “falta de autenticidade” dos partidos.”[1]

A estrutura do regime liberal-democrático funciona da seguinte forma: os partidos políticos devem exercer o papel da representatividade política dos cidadãos, defendendo as suas respectivas causas. Em tese, o partido funcionaria como um instrumento de insatisfação popular e como uma ferramenta de mudança social e política. O poder jurídico e político exercido pelo partido seria vital para o sistema representativo. Na prática, tudo isso cai por terra. A análise de Manoilescu expõe que os partidos, desde o início, funcionavam de forma divisionista, sobretudo para organizar a luta entre “revolução” contra “reação”.[2] Esse caso é reforçado ainda mais pela existência dos infames partidos situacionistas e de toda a imensa máquina do Partido Republicano, na gênese da República, com diversas filiais em todos os estados com o único objetivo de manter o regime instituído. Era, em essência, uma mera abstração. Não obstante, todo o maquinário do partidarismo gira em torno de marketing. O que são as eleições liberal-democráticas se não uma grande venda? Mediante os imparáveis escândalos de compra de votos, a venda de soluções milagrosas e de candidatos “limpinhos” é da natureza da vida partidária. Reale escreve:

“No fundo, um partido não passa de uma associação comercial, como qualquer outra, fundada com o fim de explorar a matéria-prima do voto na fabricação do produto deputado.”[3]

Historicamente, o partido político teve a sua função, em épocas cuja as aspirações populares eram estritamente políticas. Porém, com o avanço tecnológico e social da humanidade, não mais podem atender às novas necessidades impostas pela marcha da história. É uma organização de caráter transitório e unilateral, sujeito às mais variadas formas de corrupção, sejam de caráter ideológico (a exemplo do entrismo) ou econômico. Na análise de Manoilescu, os partidos perderam completamente sua função após o fim do supracitado conflito entre “revolução” e “reação”, tendo apenas um papel de organizar o equilíbrio das classes sociais. Entretanto, realizando de forma muito mais ineficiente, algo que naturalmente seria função do Estado, de tipo corporativo. O doutrinador corporativo conclui:

“Eis como, partindo da ideia e do papel funcional de toda a organização social, chegamos à conclusão que os partidos são organismos perecíveis que se extinguirão no dia em que, em todos os países, o sufrágio universal tiver execução e as liberdades dos cidadãos forem completas. Os partidos não podem, pois, preencher esse papel social, como já o provou a social democracia do Ocidente; e muito menos poderão exercer o papel econômico, para que não foram criados.”[4]

O partido, portanto, é um órgão inorgânico e ineficiente da representação popular. As democracias liberais se apegam a um capricho desatualizado, grande criador de dissensão no âmago do corpo civil. Lamounier e Meneguello afirmam: “O partido não se transforma, como diria Sérgio Buarque de Holanda, na vitória do abstrato sobre o corpóreo. A mutação camaleônica é o processo que permite aos indivíduos que o compõem manterem seu acesso ao Estado, que é o grande dispensador de favores. Conclui-se, portanto, que o polipartidismo é burguês, mas num sentido lato: porque não serve à expansão do escopo da política e da cidadania.”[5] É impossível desassociar o fracasso demoliberal do papel dos partidos políticos. Vale ressaltar a análise de Schumpeter, reiterando o parecer de Reale ante a organização partidária:

“O partido não é, como nos queria convencer a doutrina clássica (ou Edmund Burke), um grupo de homens que tenciona promover o bem-estar público baseado em algum princípio comum. […] O partido é um grupo cujos membros resolvem agir de maneira concertada na luta competitiva pelo poder político. Se não fosse assim, seria impossível aos diversos partidos adotar exatamente, ou quase exatamente, os mesmos programas” (Joseph Schumpeter. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Cit., p. 353).

Em tempos modernos, é comum ver argumentos que afirmam que a críticas ao sistema partidário são essencialmente “caducas” e “antidemocráticas”, usando como exemplo as restrições impostas pelo Estado Novo e pelo Regime de 64-85. Porém, mostra-se extremamente limitado aquele que crê que um regime verdadeiramente democrático necessita de um desatualizado modo de representação, anticientífico e comprovadamente ineficiente na grande maioria dos países que foi reinante. O regime é tão decadente e evidentemente podre, que até um dos burocratas do sistema reconhecem a ineficiência latente. É Lewandowski quem afirma: “Se sabe que a democracia está em crise, todos dizem isso. Mas o que está em crise na verdade é a democracia representativa, liberal burguesa, a democracia dos partidos, na qual, tenho certeza, que nenhum de nós se sente representado adequadamente. Essas crises sucessivas têm uma raiz profunda, que é o sistema político que, de fato, não nos representa”. O mesmo radicalmente afirma que a democracia representativa “é um modelo que se esgotou, assim como o modelo dos partidos tradicionais.”[6] A fala de Ricardo Lewandowski não é uma mera opinião, mas em si uma constatação da realidade. Realidade essa vivida por todos os brasileiros.

É mais do que evidente que a organização partidária necessita ser substituída por algo mais eficiente. Tal realidade marcou o debate intelectual no início da República, apreciando as teorias do ilustre pensador Alberto Torres, desenvolvidas pelo sociólogo Oliveira Vianna ao curso de seu desenvolvimento intelectual. O Corporativismo e também o Autoritarismo (ideias entre si distintas) foram apregoados no período, havendo um embate entre a eficiente e orgânica representação corporativa (As Bases do Pensamento Novo) ou no lugar havendo uma forte figura no Poder Executivo, distinguindo-se do Partido Único em voga na Europa, sendo visto como uma ideia alógena ao Brasil. Ambas as teses desenvolvidas em resposta ao decadente sistema democrático liberal partidário.

As soluções propostas ao longo do debate ideológico

A crítica ao partidarismo já estava estabelecida entre os intelectuais brasileiros. O pensamento liberal é caracterizado pelos antagonismos. Os partidos, entroncados na falsa premissa de representação popular, também característico das falsidades do democratismo, servem ao mais esdrúxulo esquema de divisão em um sistema política. É puramente fruto de um idealismo utópico, essencialmente falso. O idealismo utópico, descrito por Oliveira Vianna, é uma característica inata do regime liberal-democrático, justamente por entroncar-se em teses geralmente incongruentes com a própria realidade. Vianna descreve:

“idealismo utópico é todo e qualquer sistema doutrinário, todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e dirigir. O que realmente caracteriza e denuncia a presença do idealismo utópico num sistema constitucional é a disparidade que há entre a grandeza e a impressionante euritmia da sua estrutura e a insignificância do seu rendimento efetivo — e isto quando não se verifica a sua esterilidade completa.”[7]

Alberto Torres e Oliveira Vianna foram os precursores da crítica ao sistema demoliberal partidário, ávidos defensores da soberania e realidade nacional. Nogueira Saldanha comenta que ambos os pensadores pensaram “em quebrar os pudores liberais e usar o Estado “forte” para integrar o país, unindo o país legal ao país real (os dois termos vinham de Tobias Barreto), e trazendo aqueles problemas viscerais para o plano central das decisões governamentais.”[8] Era a gênese de um novo pensamento político, essencialmente brasileiro e moderno.

As teorias corporativas estabelecidas por Oliveira Vianna viriam a se tornar a grande influência política da época. Não apenas o Corporativismo, mas a necessidade de um Estado Autoritário foi muito defendida por grande parte da intelectualidade da época, como Azevedo Amaral, Francisco Campos e Bezerra de Freitas. Muitos confundem com a organização totalitária realizada por certos regimes europeus, porém, é um equívoco crasso equiparar os modelos autoritários com o totalitarismo. Fernando Henrique Cardoso o Estado Autoritário como um regime dotado de centralização crescente e preponderância do Executivo ante os outros poderes. Distinto do totalitarismo por não ser mobilizador de massas, não constrói um partido e, principalmente, não impõe uma forma estrita de vida cotidiana.[9] Azevedo Amaral salienta:

“O Estado autoritário não é, como se poderia julgar à primeira vista, aquele em que a organização estatal abrange na sua esfera de atuação o conjunto da vida coletiva da nação […] O que define o totalitarismo, no sentido peculiar que a essa expressão lhe deu o fascismo, não é portanto a extensão do poder estatal, mas a natureza compressiva, absorvente, aniquiladora da personalidade humana, que imprime às instituições fascistas um aspecto repelente, tornando-as tão incompatíveis com todos que prezam a dignidade do espírito.”[10]

Vianna apresenta uma argumentação que viria a alicerçar a base da oposição ao modelo totalitário no Brasil. Argumenta que não há na consciência coletiva nacional brasileira uma mística “que se apodere da alma nacional e a mova num sentido nitidamente determinado, para um objeto preciso”.[11] A organização corporativa também dificilmente permitiria a já citada existência de um partido único, nos moldes aplicados na Itália. Manoilescu argumenta que tal coisa só poderia acontecer caso o partido fosse capaz de conquistar todas as corporações.[12] Neste caso, a argumentação de Bezerra de Freitas, acerca do Estado Novo, é apreciável de forma mais geral:

“O único partido admissível […] é o partido do Estado e, como este se acha identificado com a coletividade nacional, esse partido é constituído pela própria Nação.”[13]

Apesar das críticas acertadas acerca do modelo partidário, os intelectuais do modelo autoritário não estavam eximidos de erro. Azevedo Amaral apresentava uma visão de Estado baseada em fatores cientificistas, em um determinismo racial, quando afirma que o “fator biológico é o predominante na determinação dos destinos e das expressões da vida coletiva de qualquer Nação”. Divide-se, na obra de Amaral, o Estado em três realidades: militar, constituída sob a influência do instinto de conservação; econômico, para a satisfação do instinto nutritivo e o político, criação do instinto de domínio. Tudo emanando de fatores puramente biológicos. Miguel Reale critica a tese de Amaral, afirmando:

“Partindo do indivíduo, ou melhor do exame unilateral dos instintos do homem, e com uma fantástica aritmética em que se somam e se subtraem plasmas germinativos, o A. conseguiu erguer um edifício curioso, dando a impressão de que procurou fazer a caricatura da verdade para pôr em realce alguns dos seus aspectos parciais. No fundo, não fez mais que apresentar alguns dos seus aspectos parciais. No fundo, não fez mais que apresentar uma variante da velha e vencida distinção spenceriana entre sociedade industrial e sociedade militar, sacrificando uma porção de observações preciosas devido ao desejo evidente de apresentar coisas novas em folha.”[14]

A tese Integralista justamente se entronca em uma concepção muito mais complexa e completa do Estado, sendo uma visão verdadeiramente integral. É Gustavo Barroso quem afirma que o Estado é um todo, uma síntese espiritual, moral e econômica. Muito distante da tese de Azevedo Amaral, essencialmente materialista pelos próprios vícios do autor. Portanto, faz-se mister conceber o Estado como uma estrutura muito mais avançada do que mero resultado de realidades biológicas, assim como o Nazismo erroneamente concebe, ainda caindo nos erros de Bluntschli.

O Estado Integral vai muito além de um mero “Estado Autoritário”, pois é simplista afirmar que a solução de todos os problemas está na mera centralização administrativa. É um Estado que não é construído por um homem poderoso, chefe do Executivo. É construído pelo Homem Integral, que é espírito-razão-matéria. “Sobre esse homem se deve construir um Estado Integral: espiritual na afirmação de Deus, da liberdade e da dignidade da pessoa humana; racional na sua feição hierárquica e disciplinada; material na sua organização econômica.”[15]

Conclusão

Em um artigo publicado no El Diário em colaboração com o The Guardian, de autoria de Owen Jones, intitulado “Jóvenes que reniegan de la democracia”, é afirmado que a democracia, em todo o mundo, está morrendo. Porém, é necessário fazer uma análise de consciência para saber se esta informação realmente procede com a realidade. Realmente há uma democracia no atual Ocidente? O regime dos partidos é uma democracia de brincadeiras, um grandíssimo teatro de proporções continentais. Não há uma real seriedade em propor soluções aos problemas mais latentes que tem assolado as populações do mundo cada vez mais. Em vez disso, nos Congressos e Parlamentos, intrigas e brigas são cada vez mais constantes. Coisa, realmente, ridícula.

O Brasil é um dos maiores exemplos disso. A grande maioria dos ocorridos “bombásticos” no Congresso são ocorridos geralmente patéticos, de teor humorístico. Coisa vista como nova, mas em 1963, havia até mesmo assassinato, como no caso em que Arnon de Mello atingiu José Kairala, enquanto mirava em um desafeto político, Silvestre Péricles. É uma situação mais do que lamentável na dita “Casa da Democracia”. Portanto, é muito fácil tirar a conclusão: isso não é democracia. É desordem, jogo desordenado de interesses individuais. Não é um regime que serve ao povo.

Não é de surpreender que soluções autoritárias, como a de Azevedo Amaral, são procuradas. Mas é necessário procurar a melhor eficiência e o melhor sistema. Não será encontrado, em um mero autoritarismo de chefe de Executivo, a solução para os problemas nacionais. É necessário um Estado Corporativo forte, ordenado e coordenado, fortemente auxiliado pelos trabalhadores. É a realização de uma verdadeira democracia, orgânica, eficiente e representativa. É a democracia de verdade, na prática. Não a falsa democracia, da magia do sufrágio universal.

Autor: J.M.

Notas:

[1] LAMOUNIER, B.; MENEGUELLO, R. Partidos políticos e consolidação democrática: o caso brasileiro. São Paulo: Brasiliense. p. 10.

[2] MANOILESCU, Mihail, O Século do Corporativismo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1938. p. 97.

[3] REALE, Miguel, Obras Políticas (1ª Fase – 1931/1937). Volume III. Brasília: UnB, 1983. p. 165.

[4] MANOILESCU, Mihail, O Século do Corporativismo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1938. pp. 97-98.

[5] LAMOUNIER, B.; MENEGUELLO, R. Partidos políticos e consolidação democrática: o caso brasileiro. São Paulo: Brasiliense. p. 58.

[6] ‘Ser democrata hoje é defender efetivação dos direitos fundamentais’, diz Lewandowski. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/02/11/ser-democrata-hoje-e-defender-efetivacao-dos-direitos-fundamentais-diz-lewandowski/.

[7] FAUSTO, Boris. O pensamento nacionalista autoritário (1920-1940). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 44.

[8] O Brasil República: Reflexões de Centenário. Revista Brasileira de Estudos Políticas, Belo Horizonte, 1989-1990, n. 69, pp. 43-61.

[9] CARDOSO, Fernando Henrique, Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 188.

[10] FAUSTO, Boris. O pensamento nacionalista autoritário (1920-1940). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 7.

[11] Idem.

[12] MANOILESCU, Mihail, O Século do Corporativismo. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1938. p. 99.

[13] DE FREITAS, Bezerra, Fisionomia e Estrutura do Estado Novo. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1941. p. 11.

[14] REALE, Miguel, Obras Políticas (1ª Fase – 1931/1937). Volume III. Brasília: UnB, 1983. p. 125.

[15] BARROSO, Gustavo. Evolução do conceito de Estado. Disponível em: https://novaaccao.com/evolucao-do-conceito-de-estado/. Acesso em: 17 abr. 2025.

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