Tristão de Ataíde, em seu último livro “No limiar da Idade Nova” atribuiu-me, sem dizer a razão, um desprezo romântico pela liberdade. Quando me mostraram essa referenciar, não pude deixar de sorrir, pensando como é fácil, mesmo aos olhos dos homens de cultura e de talento, cada um de nós ter tido por aquilo que não é. Creio que o grande escritor católico, para tal juízo, se baseou em um artigo intitulado “Liberalismo de 2.º Grau”, que publiquei na “A Offensiva”, para mostrar a minha incompreensão relativamente a certas antinomias por ele estabelecidas, tais como “centralização e descentralização”, “unidade e variedade”, “autoridade e liberdade”, etc., todas elas próprias da doutrina liberal e em desarmonia com qualquer sistema orgânico e integral.
Concluir desse artigo que não tenho amor à liberdade é verdadeiramente absurdo, quando não ridículo. Amo tanto a liberdade que tenho receio de a perder ou comprometer com promessas ilusórias com bizantinismos e “distínguos” que a vida a todo instante desmente e pulveriza.
Não aceitando o “primado” da liberdade sobre a autoridade, como quer Tristão de Ataíde, faço-o porque não entendo como se possa estabelecer “primado” entre esses dois princípios intimamente ligados, e tão intimamente, que sem um o outro não teria sentido. Como se vê, não estabeleço, em contraposição ao “líder” distributivista, o “primado” da autoridade, porquanto, no meu modo de ver, esta não é superior nem inferior à liberdade, por serem ambas necessárias e igualmente complementares.
Deixando, porém, de lado essa questão que a muitos poderá parecer mais de interpretação de vocábulos do que de diferenciação substancial, é preferível provar o meu amor à liberdade com dados mais concretos.
Ama a liberdade aquele que serve à Democracia, ou seja, a uma forma de governo na qual esteja estabelecido como uma das finalidades o alargamento progressivo da esfera de interferência do povo governado, com uma não menos progressiva diminuição de arbítrio pessoal por parte dos governantes.
Foi por esse motivo que em “O Estado Moderno” escrevi claramente que o Integralismo não pode se contentar com a Demofilia tão cara ao gosto de certos pensadores patrícios, pois, “a Demofilia muitas vezes esconde a incompreensão deste fenômeno inevitável que é a participação cada vez maior do povo na vida do Estado, porque esta é a aspiração, a vontade permanente que anima todo ser humano” (pág. 53 da 3.º edição).*
Aliás, tornei-me integralista e elaborei ideias integralistas porque não acreditei na possibilidade de liberdades concretas no regímen dos partidos “liberais” oligárquicos ou no sistema autocrático em que degrada todo socialismo.
Nunca me afastei um só instante do dever que a minha consciência me impôs de lutar pela liberdade dentro de uma democracia orgânica. Isto porque respeito tanto a dignidade alheia como sei fazer respeitar a que cabe à minha pessoa.
Nunca escondo a quem quer que seja a minha repulsa às ditaduras pessoais ou não, que objetivem a perpetuação no poder. Nunca personalizo as minhas convicções e sempre obedeço com lealdade, pois, no fundo, sei que estou obedecendo a um princípio que a razão aceita e o coração acalenta. E assim faz todo integralista.
Não creio, pois, que alguém ame mais a liberdade. Odeio — isto sim — a liberdade de estufa que certa displicência intelectual cultiva para conversas ligeiras, enquanto, bem perto, geme a necessidade na rua! Odeio as liberdades que a hipocrisia “liberal” borda na colcha constitucional que vai cobrir o himeneu dos tradicionais cambalachos, com infames sacrifícios de homens, e depois a farra gorda na harmonia provisória de uma vitória fácil… Odeio a liberdade que redunda em opressão, a liberdade daqueles que, fortes e poderosos, a reclamam tão somente para dar impressão de igualdade aos pobres coitados que lutam ou esperam por ela.[1]
Amo tanto a liberdade que dia a dia a conquisto e não deixo de convidar os outros a conquistá-la. Porque só a liberdade conquistada é digna desse nome. Quem recebe de presente o direito de ser livre, sofre uma diminuição em sua própria dignidade, logo recebe apenas uma ilusão de liberdade, eis que esta não pode deixar de ser uma manifestação, uma projeção e um complemento da pessoa.
O povo, por conseguinte, que tudo espera de um homem, arrisca diminuir-se. O povo não pode recebê-la passivamente, mas sim conquistar a liberdade lutando junto, em harmonia, com quem a dirige. Sou, portanto, contra o cesarismo porque o povo não pode prostrar-se aos pés de César, por maiores que sejam os seus méritos e por mais que brilhe em sua frente a estrela das vitórias. E César, quando animado da vontade de servir e não da de ser servido, é o primeiro a reconhecer os direitos do povo. E foi o que fez o chefe da AIB.
Nesse sentido de conquista da liberdade, de conquista individual e de conquista social, é que reside o caráter especificamente diferente do Integralismo brasileiro, que assim como sabe distinguir o reino de Cristo do reino de César, também sabe distinguir a pessoa física de César, também sabe distinguir a pessoa física de César da pessoa jurídica do Estado. Essas duas distinções são indispensáveis para a garantia das liberdades: uma nos assegura a liberdade espiritual, a outra a liberdade social e política.
Precisamente porque César é homem e, portanto, falível, não o podemos identificar com o Estado que tem o soberano e perigoso poder de coagir, de tornar obrigatória uma norma social, tanto realizando os fins morais como indo contra eles e a natureza. A liberdade, portanto, exige possibilidade de fiscalização e de crítica construtivas, o que a César, às vezes, aborrece pelo fato de ser a crítica que mais aquela que fere a verdade.
O sempre moderno Pascal escreveu este aforisma digno da nossa mais profunda meditação: “dizer a verdade é útil àquele a quem é dita, mas desvantajoso para aqueles que a dizem porque estes se fazem odiar”. E ai do país em que a palavra da verdade seja a causa do ódio de César!
O Estado Integralista, que está assentado sobre o mais orgânico dos realismos, não pode deixar de ter em sua base a certeza de que existem fragilidades humanas; e de que toda a nossa força consiste em prevení-las. É sobre o conceito do homem cristão — matéria e espírito, instinto e razão —, que devemos elevar o edifício do Estado cristão.
Somente esse pensamento nos garante uma verdadeira e concreta liberdade, liberdade integral que consiste em poder de querer com conhecimento e consciência, e em poder de fazer com altivez e dignidade.
Como se vê, erram aqueles que atribuem ao Integralismo o propósito de sufocar as liberdades populares. Pelo contrário, nosso desejo é organizar o povo em suas associações naturais — que são as de ordens biológica, cultural, espiritual e econômica, como a família, o município e o sindicato, etc. — afim de que ele possa ser de fato livre.
Na ordem política, em verdade, o objetivo da doutrina do sigma é realizar a representação popular na verdadeira democracia que tão somente é aquela que se institui sobre bases sindicais e corporativas.
Como já tive ocasião de escrever em meu livro “O Capitalismo Internacional”, nós não somos contra a Democracia, mas sim contra uma determinada e particular forma de Democracia — a Democracia Liberal — a qual já realizou a sua missão histórica, não sendo necessário, para combater os seus males atuais que são evidentes, negar o que de bom e de grandioso também ela, em seu tempo e em seu clima propícios, soube realizar.
Se o fim político do Integralismo é a identificação do Estado com o Povo, do Estado com a Nação, é claro que, mediante o sistema das Corporações, instituiremos a Democracia Integral, máxima garantidora da liberdade, porque realizadora de uma ampla e permanente participação do povo. Como se vê, o nosso conceito de liberdade é totalitário e realista, visando a defesa dos direitos naturais do indivíduo e da pessoa, sem sacrificar o supremo direito do Estado que é o de coordenar e dirigir, e sem ofender os valores morais, para o bem particular de cada qual e o bem comum da Nação.
Autor: Miguel Reale. Retirado de “Panorama”, Março de 1936. págs. 1-2-3-4.
Notas:
* Citação presente na: REALE, Miguel, Obras Políticas (1ª Fase – 1931/1937). Volume II. Brasília: UnB, 1983. p. 45.
[1] “O Liberalismo, que devia ser relativista por definição, ficou sendo assim um nome vazio capaz de esconder com a lembrança de uma aspiração passada os mais inconfessáveis contrabandos de privilégios.[…] Houve então um paradoxo na história, devido a esse contraste notado por Bergson entre os acontecimentos que mudam e os seus nomes “cristalizados” que se perpetuam: houve um Fatalismo servindo à liberdade e um Liberalismo servindo à Ditadura…” REALE, Miguel, Obras Políticas (1ª Fase – 1931/1937). Volume III. Brasília: UnB, 1983. p. 8.