Nota preliminar
A concepção Cristã e orgânica do Estado Integralista sempre seguiu as sábias palavras da Santa Sé, em sua brilhantíssima e justa Doutrina Social. Os postulados estabelecidos pelas Encíclicas dos Santos Papas foram de suma importância na síntese doutrinária, sendo fundamental o reconhecimento destes para alicerçar as bases do Integralismo. Nas palavras de Gustavo Barroso, “o Integralismo não poderá contrariar os princípios assentados pela Igreja e os Integralistas precisam conhecer a augusta palavra de Roma sobre a grave matéria.” (G. Barroso, Integralismo e Catolicismo, p. 8) O Estado Integral está de total acordo com as concepções Católicas do Estado. Reza em nossos escritos doutrinários, nas obras de Plínio Salgado, que “Impedir que o Estado exerça opressão contra a Família, o Grupo de Trabalho, a Propriedade e o Município é presumir o Homem contra todas essas formas de desrespeito aos seus direitos.” (P. Salgado, Direitos e Deveres do Homem, pp. 290-291)
Uma concepção de Estado sinceramente Cristã e Humana.
A razão da publicação deste artigo é simples: elucidar. Já em 1931, se diferenciava a concepção Católica e Fascista de Estado, concepções estas que entram em conflito, em diversos tópicos. A doutrina do Sigma é amplamente acusada de ser “Fascista”, mesmo adotando a concepção Católica de Estado. Este opúsculo, publicado na revista “Hierarquia”, nos ilumina e demonstra que o Estado Fascista, de origem hegeliana, italiano tem muito pouco, ou quase nada, a ver com o Estado Integral, de origem aristotélica-tomista, orgânica e Cristã. Publicamos, também, ao longo do texto, pequenas notas informativas.
– J.M. (Editor).
O Estado, na Concepção Fascista e na Doutrinação Católica
Lamentando, embora, o grave dissídio, que acaba de surgir entre a Santa Sé e o governo fascista, a propósito da atividade da “Ação Católica” italiana, nenhuma surpresa com ele tiveram os espíritos que julgam os fenômenos sociais, não pelos aspectos exteriores, que eles assumem no seu desenvolvimento, mas pelos princípios substanciais, de que promanem, e que informam, inelutavelmente, o seu processo de crescimento.
Bastava conhecer, com solidez, a ideação fascista e a doutrina católica relativamente ao conceito do Estado, para se ter logo a certeza de que esse conflito teria de surgir, necessariamente, mais cedo ou mais tarde, salvo se o fascismo renegasse a base fundamental da sua ideologia, deixando, assim, de ser fascismo.
Qual o ponto de partida deste? — Sermonti, um dos mais autorizados doutrinários dessa corrente, expõe, sem possibilidade de equívoco: “O fundamento do direito fascista não é uma vaga e abstrata solidariedade social, mas a solidariedade nacional. Daqui é nacional e não indefinidamente solidarístico o dever a cujo cumprimento está subordinado o direito subjetivo; o dever em cuja satisfação plena e livre encontra razão e fundamento o direito subjetivo. Com isto se coloca na base do direito uma realidade histórica sólida: a Nação, e se fixa a evolução do direito em uma força moral coesiva e propulsiva, qual a que se desprende da ideia nacional. Enquanto que a solidariedade universal será, talvez, nobre, mas em grande parte permanecerá ideia, não chegando a ser sentimento, e, por isto, não levando à ação. E assim poder-se-á falar de uma consciência universal, mas não de uma vontade universal, podendo-se, entretanto, falar de consciência e de vontades nacionais: “a Nação italiana é um organismo que tem fins, vida, meios de ação, superiores, em poder e duração, aos dos indivíduos divididos ou agrupados, que a constituem” (Carta do Trabalho, I)”.
O fascismo tem, assim, a pretensão de ser doutrina absolutamente realista, construída sobre bases que não decorram de ideias vagas e abstratas. Ele se apresenta como colossal esforço no sentido de estabelecer equação perfeita entre a sua ideologia e as necessidades sociais.
Deste modo fixou-se no conceito “a Nação italiana”, considerada, por ele, como única entidade viva, que possui consciência coletiva sensível, e que dispõe de vontade geral concreta. “A Nação italiana” é o conceito primordial, do qual tudo deriva.
Enquanto que no Estado liberal toda a organização política, jurídica e social tinha como pedra basilar sua estrutura a noção do indivíduo como ser completo, isolado da família, do grupo, da comunidade civil, no Estado fascista tal organização assenta os seus alicerces no dado histórico “a Nação Italiana”.
Esta nova concepção de sociedade torna a pessoa humana mera função da coletividade. É o que nos assegura o mesmo Sermonti: “O DIREITO ORIGINÁRIO E PRIMITIVO PERTENCE AO ESTADO-NAÇÃO; a ele corresponde dupla obrigação do cidadão, isto é, o dever da obediência e o dever da colaboração. Os direitos do indivíduo, os direitos subjetivos NADA MAIS SÃO DO QUE DIREITOS DERIVADOS, SUBORDINADOS, SECUNDÁRIOS AO PREEMINENTE DIREITO DO ESTADO NAÇÃO (DIREITO OBJETIVO), e são classificáveis em dois grupos: a) o direito de cumprir inteira e livremente o próprio (obediência e colaboração); b) o direito de liberdade, ou de discricionariedade dos próprios atos, concebido como máximo da faculdade consentido aos indivíduos dentro dos limites do cumprimento dos seus deveres essenciais para com o Estado”.
Para o fascismo, portanto, a realidade máxima do mundo social é o Estado-Nação, que concretiza em si o direito objetivo, do qual deriva a outra realidade menor: a pessoa humana, que condensa o direito subjetivo.
Destarte, o direito subjetivo passou, no regímen fascista, à condição de simples direito derivado do direito primordial encarnado na “Nação italiana”.
Mas, “a Nação italiana” precisa de um órgão, através do qual possa ser conhecida a sua consciência coletiva, e manifestada, outrossim, a sua vontade geral. Esse órgão, segundo Sermonti, é o Estado: “O fascismo personifica no Estado a vontade nacional: o Estado é o órgão desta vontade e também o intérprete desta, e o seu regulador: “a Nação italiana é uma unidade moral, política e econômica que se realiza integralmente no Estado fascista” (Carta do Trabalho, I)”.
Como, nessa organização, “a Nação italiana” sobre-excede a todos os valores, e o Estado é a expressão genuinamente fiel da vontade nacional, a pessoa humana, nas suas manifestações, tanto de ordem moral, como de ordem política e econômica tem de se subordinar inteiramente ao comando soberano do Estado: “A subordinação do cidadão à regra de solidariedade social transforma-se em subordinação do cidadão à vontade nacional manifestada pelo Estado, e se resume na fórmula: “tudo pelo Estado e no Estado, nada contra o Estado”[1], pondera o já invocado Sermonti.
Consoante esta exposição, sucinta mas fiel, do fundamento básico de toda a construção política e social do fascismo, verifica-se que, para reagir contra a doutrinação do Estado liberal, que admitia como única realidade soberana, no seio da comunidade civil, o indivíduo, ele erigiu, como entidade única soberana “a Nação italiana”.
Se para a doutrina liberal o indivíduo e o Estado eram os únicos seres, que pesavam e que valiam na sociedade civil, para o fascismo os seres, que se revestem dessas mesmas características, são “a Nação italiana” e o Estado.
Deste modo, o fascismo só respeita e considera, na comunidade, aquilo que encontra classificação, consoante a sua ideologia, dentro da “Nação italiana”, tomada como realidade histórica.
Nestas condições, o direito à vida, o direito de propriedade, a legítima defesa, a liberdade de consciência, a dignidade pessoal, e o direito de associação, — que constituem, incontestavelmente, o conteúdo do direito subjetivo da pessoa humana —, só se veem acolhidos pelo Estado fascista enquanto este os considera como necessários à estabilidade, e ao pleno desenvolvimento da “Nação italiana”. Desde, porém, que o Estado fascista, único intérprete da consciência e das vontades nacionais, enxergue uma incompatibilidade atual, ou futura, entre aquelas prerrogativas da pessoa e as necessidades do desenvolvimento da “Nação italiana”, tal qual ele a concebe, — arroga-se o direito de abafá-las ou postergá-las.
Ora, a concepção católica de governo é muito diferente. Segundo Leão XIII: “O que se pede primeiramente aos governantes é um concurso de ordem geral, que consiste na economia total das leis e das instituições; nós queremos afirmar que eles devem proceder de tal modo que da própria organização e do governo da sociedade decorra espontaneamente, e sem esforços, a prosperidade tanto pública quanto privada.
Tal é, com efeito, a missão da prudência civil e o dever próprio daqueles que governam. Ora, o que faz uma Nação próspera é a probidade dos costumes, das famílias, fundadas nas bases da ordem e da moralidade; a prática da religião e o respeito da justiça; a imposição moderada e a distribuição equitativa dos encargos públicos; o progresso da indústria e do comércio; a agricultura florescente; e outros elementos do mesmo gênero, coisas estas que se não pode prover sem que se faça progredir paralelamente a vida e a felicidade do cidadão”.
Nessa concepção salutar a pessoa humana, a família, o grupo profissional são entidades tão reais como o Estado, dispondo cada qual, e dentro da sua esfera, de direitos inatos e imprescritíveis, contrabalançados por deveres próprios irremovíveis.
Ao Estado cabe, em tais circunstâncias, a missão superior de harmonizar, através de economia prudente, todos esses direitos e deveres recíprocos, de modo que a ação governamental se exerça sem que a pessoa humana, a família, e o grupo tenham a sua própria personalidade desconhecida; e outrossim, sem que a Nação se veja entorpecida, nos seus anseios coletivos de paz e de progresso, por atitudes dissolventes e desconjuntadas daquelas entidades atuando autônomas e independentes, alheias a qualquer pensamento comum de colaboração coletiva.
Em face destas duas maneiras tão radicalmente divergentes de encarar o Estado, era fatal o atrito, que ora o mundo católico assiste se processar, com tamanhas apreensões, entre o Vaticano e o Governo fascista.
Para este o catolicismo merece o seu apoio enquanto é religião nacional, isto é, enquanto se apresenta como um dos elementos mais enraizados da realidade histórica italiana. Nele não enxerga o fascismo a atividade divina de Jesus Cristo sobre a inteligência e a vontade humanas, exercida através da hierarquia católica, instituída pelo próprio Jesus Cristo na pessoa dos seus Apóstolos, que a transmitiram, por via de sucessão, aos pastores da Igreja universal.
O catolicismo, na concepção fascista, é mero sentimento, cuja alimentação constante e ininterrupta durante séculos e séculos, constitui um dos coeficientes mais substanciais e característicos da nacionalidade italiana, tal qual, por exemplo, o princípio monárquico. Para o fascismo, então, consoante a definição de Pio XI, na sua encíclica sobre a “Ação Católica”, de 20 de Julho último: “a Igreja, o Papa, devem limitar-se às práticas externas de religião (Missa e Sacramentos)…”
Somente debaixo desse aspecto é que o catolicismo mereceu e merece o acatamento do Estado fascista, para o qual só uma realidade existe: “a Nação italiana”.
Por ser assim, todo o esforço individual e coletivo há de ser condicionado ao fortalecimento, sempre crescente, dessa única entidade real. Sistema político, constituição da família, educação, organização do trabalho, tudo está subordinado à finalidade principal, que é o engrandecimento da “Nação italiana”.
Tirando as últimas consequências deste pressuposto básico, o fascismo afirma, – é Pio XI que certifica: “o propósito, — já em grande parte realizado —, DE MONOPOLIZAR INTEIRAMENTE A JUVENTUDE, desde a primeira infância até a idade adulta, para absoluta e exclusiva vantagem de um partido, de um regímen, sob a base de ideologia que declaradamente se resolve em verdadeira e própria estatolatria pagã[2], com negação plena não só dos direitos naturais da família, como também dos direitos sobrenaturais da Igreja.”
Ora, na doutrinação do Santo Padre, ainda na mesma encíclica, “uma concepção do Estado, que a este faz pertencer as jovens gerações, inteiramente e sem exceção, desde a tenra idade até a idade adulta, não é conciliável, para um católico, com a doutrina católica”.
E não é conciliável, porque a Igreja, tendo recebido de Jesus Cristo a missão de ensinar a todos os povos de que a finalidade principal da criatura humana é a posse definitiva de Deus, está no dever de reivindicar para os seus Ministros o apostolado de criar, no seio da sociedade civil, o ambiente espiritual santificante, em virtude do qual todos os nobres desejos pessoais, familiares, grupais, ou nacionais, são respeitáveis somente enquanto não contrariam essa finalidade.
Essa missão a encíclica reclama, invocando as palavras evangélicas: “Ide e instrui a todas as gentes, ensinando-lhes a observar tudo o que vos mandei (Mateus., 28:19-20)[3]. E o lugar que deve ter a tenra idade e a juventude na absoluta universalidade e totalidade do mandato, mostra-o Ele próprio, o Divino Mestre, criador e redentor das almas, com o seu exemplo, e com aquelas palavras particularmente memoráveis, e também particularmente formidáveis: “Deixai que venham a Mim os pequeninos, e não queirais impedi-los”…
“Estes pequenos que (quase por um Divino instinto) creem em Mim; aos quais está reservado o Reino dos Céus; dos quais os anjos da guarda veem sempre a face do Pai Celeste; ai do homem que terá escandalizado uma destas crenças”. (Mateus., 19, 13 segs., 18, 1 segs.)”[4]
Dentro de tal doutrinação, o engrandecimento da “Nação italiana” é muito, mas não é tudo. Acima dele está o engrandecimento da pessoa humana, através da educação, que pertence, de modo excelente, à Igreja.
A pessoa, pois, na preceituação desta, deve de ser a preocupação principal e constante do Estado, embora não deva ela ser considerada como sendo a fonte única de todos os direitos.
Mas, o certo é que a família, o grupo, e o Estado existem, e devem ser mantidos, harmônica e equilibradamente, por causa dela.
Em si mesmo, a família, a corporação, o Estado e a nação nada exprimiriam, pois que são todos meras pessoas morais. Eles surgiram, cresceram, e se desenvolveram porque necessários ao pleno desenvolvimento das faculdades da pessoa humana, que é a única realidade física, com existência sensível e palpável.
Ora, ao passo que a Igreja isto assevera, de modo a impedir que a pessoa humana, se for demasiadamente protegida, venha a aniquilar a vida social, e outrossim, a evitar que a sociedade, se for só a ser considerada, absorva as prerrogativas imprescritíveis daquela, o fascismo, na sua preocupação de mando incontrastável, afirma o princípio oposto, isto é, que “os direitos do indivíduo, os direitos subjetivos nada mais são do que direitos derivados, subordinados, secundários ao preeminente direito do Estado-Nação”, concorrendo, assim, para romper o equilíbrio estável preconizado e defendido pela doutrina católica.
Autor: Heráclito Sobral Pinto. Retirado de “HIERARCHIA”, Agosto de 1931. págs. 44-45-46-47-48.
Notas:
[1] Famosa frase presente na obra “A Doutrina do Fascismo”: “Criamos o Estado unitário italiano. Pensai que, desde o Império, a Itália deixou de ser um Estado unitário. Reafirmamos aqui com não menos energia a nossa fórmula do discurso no Scala de Milão: tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado” (na Câmara de Deputados. 26 de Maio de 1927, in Discorsi dei 1927, pág. 157).
[2] Gustavo Barroso, falando sobre as diferenças entre as doutrinas do Fascismo, Integralismo e Nazismo, assume uma postura semelhante: “No fundo, o Fascismo, entroncando-se na tradição romana, reveste-se dum caráter cesáreo e pagão. Cultua o super-homem nitzscheano, que é a pianta uomo de Alfieri, prendendo-se à hipertrofia dos grandes tipos do Renascimento.” BARROSO, Gustavo, O Integralismo e o Mundo. Civilização Brasileira, S.A, 1936. p. 17.
[3] “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo”. São Mateus, 28:19-20. (Bíblia Ave Maria)
[4] “Foram-lhe, então, apresentadas algumas criancinhas para que pusesse as mãos sobre elas e orasse por elas. Os discípulos, porém, as afastavam. Disse-lhes Jesus: “Deixai vir a mim estas criancinhas e não as impeçais, porque o Reino dos Céus é para aqueles que se lhes assemelham.” São Mateus, 19:13-14. (Bíblia Ave Maria)