Que viajantes terrestres, em toda a História do Mundo, poderão ter superado os Bandeirantes Brasileiros? Nem as marchas de Alexandre e de Aníbal nem as deslocações dos exércitos de Tamerlão ou Gengis Khan poderão comparar-se em extensão e profundidade, em dificuldades e imprevistos, em incertezas diante do mistério do que os desses pequenos grupos humanos, a mover-se no vasto espaço de um mundo desconhecido.
Que sabiam os Bandeirantes do que poderiam encontrar? Que estradas ou caminhos existiam à sua frente? De que recursos disporiam para se alimentar? Onde terminava a imensa terra? E como terminava? Haveria possibilidade de regressar? Quando?
Imaginai uma viagem sem pontos de referência anteriormente conhecidos, uma viagem em que se encontram rios sem nome, montanhas sem nome, campos e baixadas sem trilhos, matas virgens sem abertas, em cujo interior não se sabe o que existe. Sabe-se que se deve contar com a hostilidade dos selvagens, com a traição das onças, com o ataque em massa dos porcos selvagens, com as doenças a armas ciladas à beira dos rios ou no fundo das florestas. E nada mais.
O Bandeirismo Brasileiro é a réplica terrestre da Epopeia Marítima dos portugueses. E se Camões, referindo-se aos heróis antigos diz: “esse do sábio grego e do troiano que tiveram”, porque “um valor mais alto se levanta” com os navegantes lusitanos, também os brasileiros podem tomar para si as expressões do poeta, porque jamais Homero ou Virgílio encontrariam nos episódios de Troia e nas consequentes peregrinações dos seus heróis pelo Mediterrâneo, cenas e acontecimentos de maior grandeza do que os ocorridos nos dois séculos de aventuras dos nossos sertanistas.
Os próprios deuses e semideuses da mitologia antiga que interferem na rota dos heróis de Ilíada, da Odisseia e da Eneida encontram seus equivalentes na teogonia selvagem da torra americana, a exprimir-se numa simbologia que traduz realidades mesológicas impositivas.
A Iara, que atrai, como as sereias, que prende como Cirne, que envolve como Calipso, traduzindo dessa forma a irresistível sedução das paisagens e deter os passos dos sertanistas, não é mais real do que aquelas hábeis sedutoras que tentaram impedir a Ulisses o prosseguimento das suas façanhas? O Boitatá, cabra de fogo, a correr nas solidões das angatubas, fosforescência de ossadas antigas, não fala de morte, como Polifemo, e não se acompanha dos Juruparis e dos Sacis, como o filho de Netuno levava o cortejo de Titãs? E a Caipora ou Curupira, a ensinar caminhos errados, não se parece com os oráculos maléficos perturbadores dos nautas da Antiguidade?
As Bandeiras, que representam os mais longos e complexos roteiros de viagens empreendidas pelos homens em todos os tempos são constituídas de realidades históricas e lendas sonoras de poesia.
O historiador afirma que as primeiras investidas sertanistas se efetivaram com a finalidade de ir buscar índios para as lavouras do Litoral; que as seguintes tiveram em mira a conquista do ouro e, finalmente, das pedras preciosas. Não contesto; mas vejo, muito mais do que essas finalidades, a finalidade da aventura em si mesma, da aventura pela aventura, a paixão do ignoto, o impulso irresistível que nem mesmo os Bandeirantes saberiam explicar.
Aqueles homens de sapatões de couro cru, chapeirão desabado e facão à cinta sofriam incoercível necessidade de andar, de caminhar sempre, jamais se satisfazendo com o visto e o sabido e, como Ulisses, ansiando pelo mistério que está por detrás das montanhas ainda não transpostas, desde os rios ainda não atravessados.
Dos fins do século XVII até meados do século XVIII, essa impulsiva ansiedade se manifesta de tal maneira que se torna, por assim dizer, uma loucura geral a formação de Bandeiras para as entradas no sertão. Em São Paulo, que se tornou o centro principal do Bandeirantismo, não há uma só família que não tenha alguém ausente por meses e anos seguidos, sem que dele se houvesse a menor notícia.
Os Bandeirantes Paulistas cortam o território hoje brasileiro, de sul a norte, de leste a oeste. Nos extremos confins da nossa terra lá estão os fortes Príncipe da Beira, Coimbra, Tainatinga, a marear os limites do imenso patrimônio geográfico de cuja posse nos garantiram os heroicos sertanistas.
É nos fins do século XVI que principiam as grandes “entradas”, com Martim de Sá, seguindo-se a de Nicolau Barreto, inicia-se, desde então, o Grande Poema.
Para se ter uma ideia do que foram essas viagens, é preciso abrir a Carta das Bandeiras, de Afonso d’E Taunay. Como grandes astros errantes, repetem-se os nomes de Antônio Rapaso Tavares, Bartolomeu Bueno, o Anhanguera, Manoel Preto, Borba Gato, Pascoal Pais de Araújo, Pascoal Moreira Cabral e dezenas de outros desbravadores das selvas e plantadores de cidades.
Partem as Bandeiras por terra, no rumo da Mantiqueira, no rumo de Goiás e Mato Grosso, no rumo das montanhas centrais de Minas; partem pelas águas do Tietê, até o Rio Grande, ou descem de Minas pelo leito do São Francisco. Devassam os sertões do Paraná e do Rio Grande do Sul cruzaram o Nordeste brasileiro, desde o Ceará ao Piauí; atingem o Amazonas e vão, rio acima, por aquele mundo apocalíptico onde Deus realiza o último dia da Criação.
Entre todos os deslocamentos humanos de que temos notícia, nenhum se pode sequer comparar com a ciclópica realização dos brasileiros.
Somos únicos na História. E pena é que ainda não tenha aparecido o nosso Homero, ou o nosso Camões para, pela magia da Arte, pois só ela é capaz de fazer sobreviver de glória do gênero humano, os episódios super-homéricos das Bandeiras e as façanhas desses semideuses que se chamaram os Bandeirantes.
Autor: Plínio Salgado. Retirado de “Diários Associados”, 16 de Agosto de 1973.