Em estudo que não cabe aqui apreciar, pelos estreitos limites opostos ao desenvolvimento deste trabalho, houvemos oportunidade de referir o processo formativo do método dialético, que, fruto das elucubrações da filosofia germânica, iria encher de lutas o século XIX e relegar para segundo plano a metafísica. A esta, que decompunha e separava os fenômenos em suas categorias distintas, e os estudava em suas qualidades específicas, isoladamente, fora das suas recíprocas relações materiais, mas que também os estudava em seu repouso, como essencialmente constantes e não constantemente variáveis, ao “método metafísico”, apresentado destarte, se oporia ao método dinâmico da dialética materialista.
Em seus fundamentos, todos os argumentos dessa “dialética materialista” eram os quadros, com tintas mais carregadas, das ideias hegelianas.
Para os metafísicos, diriam os marxistas em seu afã depreciador, as coisas e os seus reflexos intelectuais, as noções, são fatos isolados; eles pensam por antíteses, opondo o negativo e o positivo, de modo absoluto. — “Essa maneira de ver, escreveria Engels, parece-nos extremamente plausível, à primeira vista, porque é a do chamado senso comum”.
Continuando no seu ataque ao que chama o “método metafísico”, escreveria, ainda, Engels: na contemplação dos fatos isolados ele esquece seu desenvolvimento e seu perecer; na do repouso esquece o movimento; à força de ver as árvores não vê mais a floresta. — “Podemos dizer com bastante exatidão, pelas necessidades de todos os dias, se um animal existe ou não: mas uma pesquisa mais profunda nos indica que, frequentemente, esse problema é dos mais complicados, pois, é impossível fixar o momento da morte, quando as pesquisas fisiológicas têm demonstrado que a morte é um fenômeno de longa duração.”
Refletindo sobre esse fato que não escapara ao velho espírito cristão, e que Engels supõe ser relevante descoberta das “pesquisas fisiológicas”, quando São Paulo singelamente já o revelara na despretensiosa legenda — “quotidie morior” — o comparsa e colaborador de Marx procura tirar ilações que imagina originais: “Da mesma maneira, causa e efeito são ideias que só têm valor em sua aplicação aos casos isolados, porém, logo que o caso isolado é encarado em suas relações gerais com o resto do universo, se confundem e se dissipam nas conexões de uma reciprocidade universal, onde causa e efeito mudam constantemente de lugar, onde o que era causa em determinado lugar e a um dado momento, torna-se efeito em outro lugar e em outro momento, e vice-versa”. E, conclui o crítico do “método do metafísico”, proclamando: “Todos esses processos naturais e métodos intelectuais estão fora do quadro do pensamento metafísico”.
Não se pode ignorar, por em dúvida, que a ideação hegeliana foi a primeira a consubstanciar numa ordem lógica esse processo eterno e constante de mudança, transformação e desenvolvimento.
Todavia, no afirmar-se tal não se pode investir da forma por que Engels, contra o que ele com entono desmerecedor classifica de “método metafísico”.
A grande evidência da filosofia moderna sobre o eterno evolver, não se pode dizer ter sido absolutamente estranha às preocupações dos metafísicos, particularmente dos metafísicos cristãos. Sem necessidade de nos elevarmos às altas esferas do pensamento filosófico, nós sentimos a percepção desses processos naturais dentro do pensamento metafísico cristão elementar: “A primeira parte da morte, que anda misturada com a nossa chamada vida, é ser esta sucessiva e transeunte, tão pelo miúdo que não é possível lograrmos dela dois instantes juntos, porque para adquirirmos um é força perdermos outro: “Omnes morimur et quasi dilabimur in terram, quae non revertuntur“, — proclamou o padre Bernardes numa passagem de sua monumental “Nova Floresta”, onde, inspirado nos sábios do Pensamento da Igreja, apresentava ao século os mistérios da vida e da morte.
E, prosseguiu o mesmo Manoel Bernardes, na sua velha página de trezentos anos, “… e, por isso, Philo, o discretíssimo entre os hebreus (como lhe chamou São Jerônimo), disse que cada idade era morte da outra antecedente idade, dando-nos a piedosa mão de Deus este amargoso cálice da morte a tragos e misturado com o cálice da vida” — para concluir com um verso de certo poeta cristão contemporâneo.
“Desde a nascença morrermos
E da origem o fim depende:
Na mesma vida se encerram
Da nossa morte as sementes”.
Valorizemos a dialética, — é de justiça — não porém, vendo nela antagonismo com a filosofia clássica: ao contrário, sinta-se que sua implantação representava um grande progresso nos estudos filosóficos. — Não se pode, como no afã marxista, pretender esquecer as vinculações da dialética com a filosofia cristã, nem criticar a metafísica, apresentando-se-a sob uma aspecto deformado.
Como ramo do conhecimento humano, a metafísica opera, ao se exaurir a ciência no mistério da causa das causas, com a resultante insatisfação do espírito. Cada ciência particular estuda uma parcela dos fenômenos universais: a metafísica fornece o processo de realizar a síntese dessas ciências e influi no próprio campo científico, como o elemento de busca das razões e das causas, da categoria nomenal dos seres. — Derivando desse conceito, que é o mais pacificador e amplo, a metafísica, utilizada na condição de método, se revela o mais capaz de conduzir o espírito na pesquisa da Verdade.
Como quer que fosse, aprouve aos corifeus do “socialismo científico” demolir a metafísica, desapropriar a dialética do idealismo e estruturar, com o subsídio de Feuerbach, a contrafação da dialética materialista. — Mas, para tanto, se faria mister reduzir o valor da obra hegeliana e imaginar um suposto “erro idealista de Hegel”.
Autor: A. B. Cotrim Neto. Retirado de “AVANTE!”, Abril de 1950. p. 32.