Fraternidade

Como resolver o problema social? Respondem o liberalismo e o capitalismo: “Que todos os homens sejam livres para administrar seus negócios como quiser.” O liberalismo e o capitalismo tiveram sua liberdade só produziram escravidão e desigualdade econômicas. O comunismo, então, sugeriu uma cura para as desigualdades: “Confisque-se toda propriedade privada produtiva em nome da coletividade e todos serão iguais e não haverá mais classes.” O comunismo teve a sua igualdade, e ela destruiu a liberdade e produziu a nova desigualdade do privilégio. Vejamos, agora, a solução católica, que diz que a reconstrução da ordem social deve começar, não com a liberdade, nem com a igualdade, mas com a fraternidade.

Para entender o papel da fraternidade, examinemos a ordem atual, que precisa ser remediada. Qual é a característica dominante? Sem nenhuma dúvida: a luta de classe entre o capital e o trabalho. “A sociedade hoje continua num estado tenso e, portanto, instável, fundamentando-se em classes com interesses contraditórios e, portanto, opostas uma à outra e, consequentemente, propensas à inimizade e ao conflito.”[1] O capital e o trabalho consideram um ao outro inimigos de forças adversas a serem conquistadas; a força do dinheiro e da influência, por um lado, é demasiadas vezes contraposta à força da massa e da organização, por outro.”… A demanda e a oferta de trabalho dividem os homens no mercado de trabalho em duas classes, como em dois campos, e a negociação entre essas partes transforma o mercado de trabalho numa arena em que os dois exércitos travam combate. A essa grave perturbação, que vem conduzindo a sociedade à ruína, deve-se evidentemente aplicar um remédio o quanto antes.”[2]

O comunismo, como ele mesmo admite, não tenta diminuir o ódio de classe; pelo contrário, tenta intensificá-lo, até que possa, em suas próprias palavras, ser bem-sucedido “na derrubada violenta de… exércitos, polícia, hierarquia burocrática, judiciário, parlamentos etc.”[3] Essa é, sem dúvida, uma maneira estranha de instaurar a paz industrial e revela muitas das contradições inerentes ao comunismo. Fala de paz, mas prepara a guerra; proíbe greves na Rússia, mas as incita aqui; protesta com razão contra a violência dirigida contra elas, mas insiste no direito de usar de violência contra os outros; edifica um paraíso, transformando primeiro o mundo em ruínas; estabelece uma sociedade sem classes, fazendo que as classe se peguem umas às outras pela garganta; gaba-se de acabar com as classes e, no entanto, estabelece em seu próprio país cerca de dezenove classes de privilégio; insta todos os sindicatos à greve geral, mas “expurga” todos aqueles que tiverem a mesma ideia em sua pátria. Seu sistema inteiro está errado; não se pode edificar a saúde num país disseminando os germes; não se pode educar o povo incendiando escolas; não se pode inaugurar a justiça pela injustiça e pelo assassínio; tampouco se podem eliminar as classes intensificando-se o sentimento de classe, nem restaurar a paz industrial indo à guerra. Ponhamos isto nas nossas cabeças: jamais teremos ordem social incitando o capital e o trabalho à violência, assim como não teríamos a paz doméstica armando as mulheres com rolos de macarrão para eliminarem todo afeto dentro da cabeça e do coração dos maridos. Aumentar a escuridão não é maneira de obter luz; a fraternidade, a igualdade e a amizade entre os homens não podem nascer da inveja, do ódio, da violência e dos “expurgos”, como a honestidade não pode nascer se dando aos bandidos o privilégio de roubar. É um completo absurdo dizer que os males do capitalismo devem piorar cada vez mais antes de a sociedade poder melhorar.
Eis, agora, os princípios gerais da solução católica, cujos pormenores devem ser entregues a uma pacífica legislação:

A sociedade hoje se organiza com base em direitos; a Igreja reconstrui-la-ia com base na função. Atualmente, a palavra mais usada, tanto pelo capital como pelo trabalho, é a palavra “direito”. No século passado, o capitalismo insistiu nos seus “direitos”, o que significava, em geral o “direito ao lucro”. Ultimamente, o pêndulo passou para o outro extremo, em que o trabalho insistindo em seus “direitos”, o que, para os extremistas, significa o direito de usar de violência e o direito a todos os lucros da indústria. Era inevitável essa reação. Assim é que, hoje, os chamados “direitos” do Capitalismo estão em conflito com os chamados “direitos” do trabalho, ambos os quais podem ser igualmente intolerantes, desumanos e antissociais.

Mas quantos de nós já ouviram o capital ou o trabalho usarem a palavra “dever”? Quantas vezes o capital ou o trabalho usaram as palavras “nossa responsabilidade”? Quantas vezes os dois usaram as palavras “nossa obrigação mútua”? A posição da Igreja é que a paz econômica só pode reinar quando essas palavras começarem a fazer sentido para as partes em guerra. Diz a Igreja que não se podem ter direitos sem os deveres correspondentes. Mas se há direitos e deveres correspondentes, então a atividade econômica tem um caráter social. Então a palavra “direito” dá seu lugar à palavra “papel” ou “função”. Esta é a solução da Igreja: reconstruir a sociedade, não sobre “direitos” egoístas, mas com base na função, “unindo os homens, não de acordo com a posição que ocupam no mercado de trabalho, mas segundo as diversas funções que exercem na sociedade.”[4]

A justiça social, então, não deve ser identificada com o ódio aos capitalistas ou com o ódio aos agitadores dos trabalhadores, como tampouco deve ser identificada com os direitos egoístas de ambos. É isso que tanto o capitalismo como o comunismo esquecem. O direito do capitalista ao seu capital e o direito do trabalhador ao seu sindicato são ambos condicionados pelos serviços que prestam à sociedade; ambos exigem uma justificação social, e podem ambos ser revogados se o bem comum não for servido, assim como o direito de dirigir automóveis pode ser cassado se alguém se recusar a respeitar as vidas dos pedestres, mesmo dos pedestres descuidados.

Para compreender isto, invoquemos a analogia do corpo humano. O corpo humano não poderia funcionar se fosse só olhos ou só ouvidos. A ordem depende de diversos órgãos e membros trabalhando juntos em prol do organismo como um todo. “Assim como no organismo vivo é impossível propiciar o bem do todo a menos que cada uma das partes e cada membro individual receba aquilo de que precisa para o exercício de suas próprias funções, assim também é impossível cuidar do organismo social e do bem da sociedade como uma unidade, a menos que cada parte e cada membro individual… receba todo o necessário para o exercício de suas funções sociais.”[5]

Assim como o corpo não é composto só de tronco e cabeça, assim também a sociedade não se compõe só de capital e trabalho. Tem o corpo muitos órgãos, por exemplo, o coração para circular o sangue, o pulmão para respirar, os olhos para ver etc., e todos eles cooperam para o bem do todo. Do mesmo modo, como no corpo humano os diversos órgãos não vivem pelo ódio de classe e como os olhos não odeiam os pés porque caminham, mas vivem todos em harmonia por cumprirem suas respectivas funções, assim também a sociedade alcançará a paz unindo os seus vários grupos e ocupações para o bem comum. Há, porém, uma diferença entre o organismo humano e a ordem social. Um carpinteiro pode tornar-se fazendeiro, e o coveiro, banqueiro. Para revelar a diferença entre essa livre atividade do indivíduo dentro da sociedade e a atividade forçada da célula dentro do corpo, o Santo Padre a chama de “vocacional”, ou seja, o desempenho social do indivíduo pode ser comparado a uma vocação.
Em vez, portanto, de organizar a sociedade em dois campos, capital e trabalho, como dois inimigos cheios de rancor, a sociedade será organizada com base nas funções, em diversos grupos ou guildas de várias naturezas e números, com a contribuição que cada grupo faz à sociedade como um todo; ou seja, “aqueles que praticam o mesmo ofício ou profissão… se unem em grupos vocacionais.”[6]

Por exemplo, que haja grupos vocacionais ou ocupacionais compostos por moedeiros, fazendeiros, trabalhadores têxteis, operários da indústria automobilística, trabalhadores do funcionalismo público, ferroviários, telegrafistas e telefonistas, carpinteiros, médicos, advogados, metalúrgicos e talvez vinte ou trinta outros grupos, dependendo de sua função na sociedade. Sob tal arranjo, a sociedade divide-se, não em classes, mas em profissões ou vocações. Cada grupo ou guilda reúne não só os empregados organizados, mas também os empregadores organizadores na mesma linha de trabalho. A razão para isso é que há um interesse comum entre os membros do mesmo ofício ou profissão. Organizam-se os grupos profissionais ou de ofício não para exibirem seu poder ou violência uns contra os outros, nem tampouco para intimidarem, mas para resolverem seus diferendos corporativos por meios pacíficos. Os representantes dos empregadores e os representantes dos empregados iriam, então, em cada grupo, por exemplo, o grupo hospitaleiro ou o grupo têxtil, formar colegiados que se reúnem em sessões regulares para a discussão de todas as discordâncias, bem como para a promoção de seus interesses mútuos. Com tal arranjo, as classes baseadas na renda e na riqueza seriam eliminadas, e o conceito de profissão dominaria a sociedade. O trabalhador seria elevado, da condição de recebedor passivo de salário, à de um colaborador efetivo, dotado de um senso de responsabilidade e dignidade pessoal.

Uma sociedade dividida entre capital e trabalho não tem unidade interna. A solução da Igreja dá ao trabalho a unidade da profissão comum,

“o vínculo da união… oferecido, por um lado, pelo esforço comum dos empregadores e dos empregados de um mesmo grupo, que unem forças para produzirem bens ou oferecer serviços; por outro lado, pelo bem comum, que todos os grupos devem unir-se para prover, cada qual em sua própria esfera, em amigável harmonia.”[7]

Além disso, a Igreja sugere, uma vez que a vida industrial moderna é extremamente complexa e um grupo depende do outro, como a indústria do automóvel depende da indústria do aço, que haja uma inter-relação entre os diversos grupos ocupacionais. Assim como a mão no corpo humano tem uma função ou profissão e o pé tem outra função ou profissão, mas ambos se unem para o funcionamento ordenado do organismo como um todo, assim também o grupo têxtil, o grupo automobilístico, o grupo da agricultura, o grupo bancário, cada qual formado de empregadores e empregados, devem trabalhar em conjunto e dirigir todas as suas forças e esforços para um fim mais alto, a saber, o bem da nação como um todo e o melhoramento da humanidade. Isso implicaria na federação de todos os grupos, por meio de representantes, num conselho nacional.

Um quinto ponto, mais importante, é o papel que o Estado deve desempenhar em relação aos grupos profissionais. É clara a posição da Igreja; ela evita os dois extremos errôneos, o extremo em que o Estado nada tem a dizer, que é o individualismo, e o extremo em que o Estado tem tudo a dizer, que é o fascismo ou o comunismo. Para o funcionamento desses grupos, é importante que o Estado tenha mais a dizer do que sob o liberalismo, e menos a dizer do que sob o fascismo ou o comunismo. Para o liberalismo, o Estado é um policial, que nunca ousa interferir nos negócios, sob pena de violar sua suposta “liberdade”. Para o comunismo e para o fascismo, o Estado é uma babá, que toma conta dos indivíduos e dos grupos, do berço à sepultura, e os despoja de sua justa autonomia e independência. A meio caminho entre esses dois extremos, do Estado indiferente aos negócios e do Estado que controla e administra os negócios ou os faz servirem “a objetivos políticos particulares”, como no caso do nazismo e do fascismo, está o áureo meio-termo do Estado “que contribui para a iniciação de uma ordem social melhor.”[8]

“Que o Estado supervisione essas sociedades de cidadãos unidos no exercício de seu direito; mas não se intrometa em suas questões particulares e na sua organização, pois as coisas se movem e vivem pela alma que trazem dentro de si, e podem ser mortas se agarradas por uma mão vinda de fora.”[9]

A ordem da guilda não se identifica como nenhuma ordem política. Ela se encaixará em qualquer sistema e se encaixaria especialmente bem em nosso próprio sistema. Vai encaixar-se perfeitamente se evitarmos as ciladas do fascismo, do nazismo e do comunismo, em que os grupos e os sindicatos são subservientes ao Estado ou ao Partido. Na visão católica, o Estado é o servo dos grupos católicos, e não os grupos instrumentos do Estado. A solução católica evita o mal comunista e fascista de deixar a maioria à mercê de uma minoria ditatorial; e, do mesmo modo, o outro extremo do capitalismo, que deixa a maioria à mercê de uma minoria de exploradores econômicos gananciosos.

Em suma, é esta a posição da Igreja:

“o reinado da colaboração mútua entre a justiça e a caridade nas relações social-econômicas só pode ser alcançado por um corpo de organizações profissionais e interprofissionais, edificado sobre sólidas fundações cristãs, trabalhando em conjunto para realizar, em formas adaptadas a diferentes lugares e circunstâncias,”

o bem comum.[10]

O universalismo pelo qual a Igreja luta não é o de uma classe, mas da humanidade; ele une os homens, não por odiarem o capitalismo, mas porque amam a justiça; não porque são antifascistas ou anticomunistas ou anti qualquer coisa, mas por serem pro Deo, pro bono publico (por Deus, pelo bem comum). Ele respeita homens e mulheres em nossa nação, não porque exultam nos Estados Unidos com sua liberdade.

Justiça e caridade — sobre essas virtudes, mais do que sobre a grandeza riqueza ou sobre o grande poder, edifica-se a força de uma nação. Deve haver justiça para moderar os excessos de uma falsa liberdade que permitiu aos homens acumularem riquezas sem responsabilidades sociais. Deve haver caridade para mitigar o ódio de classe que os comunistas gostariam de exacerbar. Mas não pode haver justiça e caridade sem uma vigorosa crença no Deus que julga e no Deus que perdoa. Sobre o reconhecimento desse Deus fundou-se a nossa nação, e só sob esse Pai comum podemos chamar “irmãos” uns aos outros. Só quando reconhecemos o Deus de quem vem toda graça e toda bênção podemos compreender o símbolo da nossa democracia. Não é um martelo e uma foice ou uma suástica ou um feixe de varas, coisas todas elas que, mundanamente, cheiram a terra. É um pássaro — não uma coruja que pia no escuro, nem um morcego que vaga pela noite; não é um pardal que permanece junto à terra, nem um abutre que só pensa em sua presa. Pelo contrário, com a plena consciência de que os nossos direitos e a nossa liberdade vêm de mais além da mais alta montanha e da estrela mais distante, os Estados Unidos da América escolheram o símbolo da águia, cuja “glória contempla o sol”.

Autor: Fulton Sheen.

Notas:

[1] Quadragesimo Anno, n.º 82.

[2] Quadragesimo Anno, n.º 83.

[3] Emile Burns, org., “Communist Program”, A Handbook of Marxism (New York, Haskell House Publishers Ltd., 1935).

[4] Quadragesimo Anno, n.º 83.

[5] Divinis Redemptoris, n.º 51.

[6] Quadragesimo Anno, n.º 83.

[7] Quadragesimo Anno, n.º 84.

[8] Quadragesimo Anno, n.º 95.

[9] Rerum Novarum, n.º 41.

[10] Divinis Redemptoris, n.º 54.

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