Bukele e o Novo Aço Americano

“O sistema de governo mais perfeito é aquele que produz a maior soma de felicidade possível, maior soma de segurança social e maior soma de estabilidade política.”[1]

Desde 2019, Nayib Bukele foi investido como o dirigente supremo de El Salvador, esse pedaço de terra ferido pelo sangue e pela barbárie, marcado pela doença social das facções e suas sequelas de assassinatos, sequestros, roubos e outras ações que roubaram do país seu desejo de progresso e redenção. Ainda que o registro histórico da nação não foi particularmente esplendoroso, sem aqueles males é possível imaginar certa melhora. Ainda assim, o certo é que a nação salvadorenha foi, durante décadas, devorada por seus próprios monstros internos.

Com o desafio de transformar a anarquia em ordem, Bukele lançou uma autêntica odisseia contra a delinquência incubada pelas facções, revertendo as cifras mais funestas em poucos anos mediante métodos de verdadeiro aço, provando que o ferro ainda pode dobrar as forças desagregadoras de El Salvador.

Esta cruzada mereceu-lhe um respaldo massivo no universo das redes sociais, especialmente entre os jovens, que o veem como um líder apto para os desafios que a política apresenta com crueza. Aqui não pararemos para examinar os êxitos concretos de sua magistratura até agosto de 2025, quando se oficializou a reeleição indefinida de Nayib Bukele, uma reviravolta constitucional de grande profundidade que elimina o limite de mandatos presidenciais em El Salvador.

Isto implica que Bukele poderá aspirar ao poder de forma contínua, fortalecendo sua presença ao longo prazo. Claro, os entusiastas da democracia — ainda que esta muitas vezes se pareça flácida e sem substância — reagiram com escândalo perante essa decisão, a comparando, de forma risível, com os excessos dos tiraninhos patéticos do continente.

Dentro de tudo, ainda que Bukele tenha origens com movimentos de esquerda em El Salvador, seu perfil político atual destoa muito daquela sua antiga. Seu modo de agir político, dentro dos contextos salvadorenhos, refletem manobras pragmáticas que rompem com os esquemas tradicionais das democracias, se apresentando como um líder de aço em muitos casos.

Para nos aproximarmos de seu estilo, pode-se compará-lo a várias correntes do pensamento político hispano-americano. Por um lado, autores como o venezuelano Laureano Vallenilla Lanz postularam o conceito de cesarismo democrático, a ideia de que a sociedade hispano-americana requer líderes autoritários, construtores de um país eficiente, para impor a ordem sobre o caos. Vallenilla Lanz argumentava que, dada a mistura étnica de índios, hispânicos e negros na Venezuela, existia um individualismo anárquico que levava ao caos e, por isso, eram necessários governos de força para consolidar a nação. Nessa linha, ele via os caudilhos como uma necessidade orgânica diante da debilidade das instituições liberais.

“As coisas são como são e não como os ideólogos gostariam que fossem.”[2]

De modo análogo, Bukele se apresenta como um “homem forte” que assume poderes extraordinários para reconstruir um Estado considerado enfermo ou ineficaz. Vallenilla Lanz acreditava que a sociedade deve ser entendida como um organismo biológico regido por fatores históricos e étnicos; por isso, insistia em que as forças coletivas estão acima das individuais. Sob essa perspectiva, Bukele encarna a figura do líder orgânico: não confia na vontade débil de indivíduos isolados, mas sim em um projeto coletivo canalizado através de um Executivo poderoso, comandado por sua figura.

O Novo Etnarca

“O governo há de ser etológico e o chefe… etnarca.”[3]

O mestre do Libertador Simón Bolívar, o errático e excêntrico Simón Rodríguez – ou Samuel Róbinson -, postulava que as Repúblicas deveriam aspirar a instaurar modelos próprios, autônomos, distantes da imitação pueril e do servilismo europeu.

Esse chamado à originalidade ressoa em Bukele, que elogiou soluções autóctones (por exemplo, na área da segurança) e rejeitou sem rodeios modismos das democracias estrangeiras. Seguindo a Rodríguez, Bukele parece assumir que a democracia importada não serve plenamente em El Salvador, e por isso busca instituir um sistema híbrido que pode ser visto como efetivo – arriscando-nos a chamá-lo de demo-cesarismo.

De acordo com essa ótica robinsoniana, o líder salvadorenho se sente habilitado a inovar institucionalmente: seu êxito midiático — presença direta nas redes sociais, decretos executivos, plebiscitos municipais — se apresenta como um experimento genuinamente hispano-americano. Em suma, Bukele se situa na tradição robinsoniana de criar estruturas próprias para a região, fiel ao princípio de que “ou inventamos ou erramos”.

“Onde iremos buscar modelos? A América Espanhola é original, originais hão de ser suas Instituições e seu Governo, e originais os meios de fundar um e outro. Ou inventamos ou erramos.”[4]

Diante de uma sociedade carente de valores cívicos, desprovida de liderança política e imersa em um vazio como sociedade organizada e institucionalizada, torna-se imprescindível recorrer a operações fundamentais para edificar uma nova ordem social. Tais operações devem se assentar sobre três princípios entrelaçados: dogma, disciplina e economia.[5]

O dogma representa o corpo doutrinário que sustenta a ação, isto é, a base ideológica ou filosófica a partir da qual se projeta o governo. A disciplina, por sua vez, é o mecanismo regulador que garante que toda ação se execute com ordem e fidelidade ao dogma.

Por fim, a economia se refere à administração racional dos recursos em função dos fins propostos, sempre sob a guia da disciplina.[6] Bukele, nesse sentido, soube articular esses três elementos em seu governo: com um horizonte político claro, uma estratégia férrea e uma administração austera, porém eficaz.

A combinação desses princípios lhe permitiu consolidar um regime que opera com coerência interna e eficácia prática. Em consequência, todo governo que aspire ser eficiente e transformador não pode prescindir do ordenamento rigoroso desses três eixos, que constituem a arquitetura mínima de um poder diretivo verdadeiro.

Bukele nos expressa de forma muito lúcida aqueles princípios que constituem a conjugação prática de quatro elementos políticos de orientação social propostos por Rodríguez:

“Ordenar, dirigir, regir y mandar.”[7]

Não se trata de funções separadas: é todo um sistema entrelaçado que opera em conjunto para sustentar o equilíbrio da sociedade.

Ordenar implica estabelecer a arquitetura da vida pública, reestruturar os espaços comuns com eficácia e ditar normas que devolvam fluidez e respeito à convivência cidadã; dirigir é a capacidade de orientar moralmente um povo, educá-lo com metas claras dentro de um projeto nacional que não renega seu passado nem copia modelos alheios; reger implica traduzir os princípios morais em corpos legais legítimos e funcionais; mandar, finalmente, é exercer a autoridade com firmeza, assegurando a coesão e a disciplina que preservam a Pátria da desagregação.

Essas qualidades, que para Simón Rodríguez definiam a tarefa do etnarca, encontram uma encarnação contemporânea em Nayib Bukele, que transformou El Salvador não apenas pelo discurso, mas sobretudo por meio de ações profundamente estruturadas.

Basta mencionar, como exemplos recentes, o cerco militar em Ilopango, em junho de 2025, onde mais de dois mil efetivos foram mobilizados para impedir a reorganização de facções;[8] a operação em Chalatenango, em 2024, com cinco mil homens ocupando toda a zona para desmontar redes criminosas;[9] ou a criação da megacárcere [CECOT] em Tecoluca, um símbolo do princípio de disciplina como eixo da ordem nacional.[10]

Estas não são, repetimos, ações dispersas: são claramente operações fundadas em um dogma político claro, em uma disciplina implacável e em uma economia eficiente de recursos. Bukele não governa à margem do caráter nacional, mas a partir de suas próprias entranhas: orienta, ordena, manda e rege conforme os costumes, necessidades e expectativas do povo salvadorenho, robustecendo assim uma forma de governo orgânica, enraizada em sua terra e em suas luzes. É, em toda sua expressão, um “etnárquico” moderno.

Ditadura Organizada

Bukele certamente pavimentou sua ascensão rumo à consolidação de um Estado centrado em sua figura através dos próprios canais da democracia. Suas decisões, sua visão e o rumo nacional subordinam-se à sua pessoa, convertendo-o em um autocrata funcional que desafia as emoções coletivas daqueles que, como

possuídos por uma liturgia vazia, seguem apegados a seus sistemas tradicionais, ainda que estes tenham se mostrado claramente insuficientes. A democracia, lamentavelmente, para as massas adictas, é boa ou má dependendo de a quem sirva. Não há angústia genuína em seus críticos, apenas o grito maníaco de uma ideologia que, por mais que grite, pouco pode fazer frente aos fatos. Nesse sentido, vale recordar as palavras de Laureano Vallenilla Lanz, que escreveu:

“Os ideólogos de toda a América, preconizando a panaceia das constituições escritas, contrariaram a obra da natureza e, considerando como um crime de lesa-Democracia tudo quanto não se cinge aos dogmas abstratos dos jacobinos teorizantes do direito político, afastaram-nos por muito tempo da possibilidade de harmonizar os preceitos escritos com as realidades governativas, estabelecendo essa constante e fatal contradição entre a lei e o fato, entre a teoria que se ensina em nossas universidades e as realidades da vida pública, entre a forma importada do estrangeiro e as modalidades práticas de nosso direito político consuetudinário: em uma palavra, entre a constituição escrita e a constituição efetiva.”[11]

Em Apontamentos sobre as Ditaduras Organizadoras e a Grande Farsa Democrática, José Santos Chocano, apoiando-se nas ideias do sublime mestre Francisco García Calderón, defende a figura do “bom tirano” como o condutor ideal para as nações do trópico. Empreende-se, assim, a consolidação de um “civilizador enérgico que impõe a ordem, que detém a desagregação social, que desenvolve as indústrias e o comércio e funde as castas discordantes”. As palavras ali impressas, ainda hoje, parecem chamar-nos, infelizmente, para recordar as naturezas inamovíveis nas esferas políticas de nossos países. Chocano, o “Cantor da América”, afirma que nossa América precisa, após séculos de democracia postiça e aérea, de uma ditadura que organize, pois muitas Repúblicas carecem de leis efetivas, partidos organizados e estabilidade real.

“Os povos que durante cem anos não souberam, não puderam ou não quiseram organizar-se, demonstrando sua incapacidade, sua impossibilidade ou sua falta de vontade para tanto, têm já, inadiavelmente, de resolver o dilema: disciplinar-se ou desaparecer, escolhendo, sem titubeios femininos nem vacilações românticas, entre as Ditaduras nacionais ou os amos estrangeiros.”[12]

O poeta peruano denuncia que a democracia em países como o Peru — e pode-se estender aos países vizinhos da região — representou uma aparência tola, sem substância organizadora, onde os processos eleitorais eram opacos, as leis ineficazes e a ordem pública inexistente. Frente a essa realidade desagradável, ampliando a perspectiva a outros países do continente, conclui, certeiramente, que é preferível uma ditadura organizadora à farsa democrática. E a alternativa é clara: disciplinar-se ou desaparecer. E em 2025 não estamos nem remotamente longe dessas visões, pois o caos ainda domina os corações sociais destes países em que todos “desejam fazer o que lhes dá vontade”.

Trazendo novamente Vallenilla Lanz, em sua leitura nasce o justo reproche à inquisição ideológica de modelos políticos abstratos na América, especialmente aqueles derivados do racionalismo jacobino — e seu fetichismo pelas constituições escritas. Denuncia-se a interrupção entre as leis importadas e a realidade social, uma tensão que gerou uma fissura insalvável entre a norma e a prática. A crítica não é apenas contra o revés da aplicação desses princípios, mas contra sua natureza mesma: pretender encravar sociedades vivas e complexas em esquemas rígidos é um ato de violência intelectual, uma negação do direito consuetudinário e das estruturas políticas próprias. A verdadeira governabilidade não surge de artifícios teóricos, mas se ergue da adaptação das leis à história, à cultura e às tradições de um povo.[13]

Um “grande tirano” ou um ditador organizado, em contraste com a alternância mísera que não leva a nada concreto, efetivo, construtivo, constitui um anseio maior, pois um se dedica à construção, enquanto os outros, em sua disputa infantilizada, destroem e obscurecem os caminhos do desenvolvimento permanente. Seguindo Chocano, à América ingovernável “urge retificar procedimentos, seguir novos rumos e romper com a farsa democrática, entrando em uma vida de verdade que, pela vontade unânime de todos ou pela energia dominadora de um só, cristalize, enfim, em uma organização completa”.[14]

Vemos, portanto, como o Príncipe da América Central, Nayib Bukele, transitou da democracia para uma forma de governo claramente obcecada com o controle e a organização de seu Estado. Desde a declaração do estado de exceção em março de 2022, ordenou mais de 85.000 detenções de supostos membros de facções, alcançou mais de 800 dias sem homicídios e reduziu drasticamente a taxa de homicídios para 1,9 por 100.000 habitantes em 2024 – uma clara melhora histórica para El Salvador.

Seus megaprojetos, como o Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), uma prisão para até 40.000 reclusos inaugurada em 2023, encarnam a doutrina da ordem militarizada e disciplinar. O regime exibe com orgulho esses desenvolvimentos como monumentos à justiça – e não sem razão, pois ali apodrecem, com justo peso, os elementos que debilitam o espírito nacional de El Salvador.

A evolução de Bukele – partindo de eleições democráticas e desembocando em um regime claramente autoritário – reflete muitas das premissas que vimos até aqui com cautela: a dissolução institucional, a necessidade de reconstrução ordenada e a convicção de que um governo forte, eficaz e disciplinado pode organizar o informe. Ainda que arraste contradições éticas evidentes, sua abordagem se apresenta como o modelo contemporâneo do ditador tropical: eficaz, visível e respaldado por uma maioria que valoriza resultados tangíveis e verídicos. Vejamos, então, nesse sentido, como “tudo depende das intenções honradas e das capacidades máximas de um organizador”.[15]

“O exercício das liberdades é apenas o resultado de uma perfeita organização democrática e, enquanto esta não sobrevém pela obra do esforço comum, e sobretudo pela instrução pública e pela educação cívica, dito exercício haverá de ser, quando menos, defeituoso.”[16]

Em sua obra grandiosa intitulada O Continente Enfermo, o pensador venezuelano César Zumeta não faz concessões: a Hispano-América é uma geografia política submersa na desagregação, no separatismo pernicioso, na mediocridade institucional, na corrupção parasitária e na servidão colonial herdada. E frente a esses sintomas, Zumeta sugere que o continente, incapaz de governar-se a si mesmo, vive em um estado de febre histórica que requer uma cura radical — e o radicalismo, aparentemente, é uma tendência hispano-americana

“Na verdade, nossa conduta não torna apetecível a liberdade. Nós a caricaturamos, manchamos e denegrimos; falsificamos seu vinho, e nas bacanais da anarquia tornamos desejável a escravidão; mas esse nosso proceder não desculpa nos demais o horror aos trabalhos de Hércules da libertação dos povos.”[17]

Se para Chocano a medicina se chama “ditadura organizada”, em Zumeta a necessidade parece ainda mais urgente: trata-se de evitar o colapso absoluto diante da cobiça estrangeira e do deterioro interno dos países americanos. Em ambos, o juízo é claro: a democracia liberal, tal como se exerceu na Hispano-América, é um artifício inoperante, algo que a maioria pode constatar, se é que a realidade atua como guia e não a ideologia abstrata. E o remédio, ainda que drástico, é assumir que o continente precisa ser governado com força e direção clara.

Sob essa perspectiva, Nayib Bukele não aparece como uma anomalia; para El Salvador, é como a resposta orgânica de um corpo enfermo que reage com uma inflamação que organiza.

“Inútil é alegar questões de direito, quando se trata de questões de fato.”[18]

Bukele herda um país que encarna muitas das enfermidades que Zumeta descreve: anarquia e instabilidade – décadas de guerra civil, pós-conflito mal gerido, domínio de maras e violência sistêmica; corrupção estrutural – partidos tradicionais como ARENA e o FMLN protagonizaram escândalos de desfalque que minaram a legitimidade do regime democrático; falta de coesão nacional – o Estado salvadorenho foi incapaz de integrar seus setores sociais, rurais e urbanos, sob um projeto comum e integrador; um povo sem fé nas instituições – as eleições eram vistas como ritos vazios, liturgias postas em cena, basicamente. A democracia não oferecia segurança, emprego nem justiça. Em suma: nada.

Nesse cenário conturbado, a chegada de Bukele é percebida como a de um restaurador, o princípio da construção nacional. Sua narrativa, que se apresenta como ruptura total com a velha classe política, é lida emocionalmente pelas massas como um ato cirúrgico: doloroso, mas necessário. Nas palavras de Zumeta, “a massa ignorantíssima” aceita o bisturi de aço contanto que alivie a infecção letal.

“Nós, em meio à ferocidade de nossas pseudodemocracias, cantamos a canção dos lobos. Homens de insuscetível retidão de consciência entoam, contudo, diante do Caribe, a canção dos cães. Respeitamos sua atitude porque a sabemos honrada e sem mácula de mesquinhez, mas ergue-se diante de nós um sinal de interrogação ominoso.”[19]

Bukele pode ser lido como a expressão natural do corpo político febril que busca sobreviver como pode por meio do mando vertical e eficiente. Em seu modelo, não há simulacro democrático nem pretensão de reger pelos velhos canais deteriorados: há cirurgia a coração aberto. Em vez de pluralismo venenoso, há direção. E onde antes havia indiferença e violência, agora há ordem e espetáculo: um Príncipe Novo.

Segundo lemos em Zumeta, a Hispano-América não podia oferecer modelos de institucionalidade à altura de seu discurso republicano. Para Chocano, essa contradição se resolvia com a ditadura organizadora. Para Bukele, resolve-se com um novo tipo de autocracia digital, pragmática e funcional: um Estado seguro e orientado a formas novas de direção política.

El Salvador, podemos concluir, é um microcosmo do continente: se está enfermo, precisa de remédio. E o remédio – como o fogo purificador ou o ferro na carne – não se pede com modos, com uma permissão feminina e titubeante: ele se faz.

Biologia de um sistema falido

“A democracia não é americana”.[20]

Para encerrar esta breve observação à luz do fenômeno Nayib Bukele, convém considerar alguns comentários do cubano Alberto Lamar Schweyer que, com provocadora agudeza e desafiando certos postulados sociológicos aqui esboçados, oferece uma perspectiva alternativa sobre a democracia na América. Ainda que parta de premissas distintas, suas conclusões resultam surpreendentemente afins às de outros pensadores de nossa tradição.

Lamar sustenta que a Hispano-América não está naturalmente disposta para a democracia, devido a uma complexa rede de fatores biológicos, históricos, sociais, geográficos e culturais que moldaram uma realidade política profundamente divergente da europeia. Essa tese se enquadra em uma visão orgânica das sociedades, na qual a forma política não pode ser separada da substância social que a anima. Nesse sentido, a democracia liberal aparece como um artifício enxertado em um continente que, por sua constituição e evolução, não desenvolveu os hábitos nem as estruturas necessárias para seu funcionamento genuíno.

“Os regimes políticos são conclusões da biologia social, produtos de culturas que encontram neles sua representação histórica, manifestação das forças orgânicas do Estado que derivam para um regime de harmonia interior. A cada meio corresponde uma cultura que envolve um sistema próprio de teorias, uma construção política determinada por suas necessidades, por seu caráter psíquico, pelo fator biológico dos indivíduos que a compõem.”[21]

Essa pan-civilização forjada por um “pequeno gênero humano”,[22] como teria advertido Bolívar, deixou em sua esteira povos fragmentados, com uma psicologia coletiva pré-social, dominados pelo sensualismo, pelo misticismo, pela melancolia e pelo culto ao caudilho. Nesse terreno, Bukele emerge — como já dito — não como uma anomalia, mas como o fruto lógico dessa genealogia histórica: o homem de ferro que, rompendo com a institucionalidade democrática, impõe a ordem pelo aço – não pela dialética parlamentar, embora utilize o sistema para ascender a seus triunfos atuais -, e que responde a uma demanda profunda de organização, não de liberdades abstratas. Sua popularidade não contradiz essa tese; ao contrário, a confirma: os povos que não se autogovernam pedem para ser governados.

A democracia, diz Lamar Schweyer, não brota em solo tropical; a igualdade não é mais que um artifício antinatural em terras onde o corpo político é feito de desiguais, de raças misturadas sem harmonia, de tribos desenraizadas da pólis.

“O tesouro espiritual da cultura não é permanente, mas começa e termina com ela, constituindo as verdades como “valores no tempo” que a Europa não podia nos legar fora de seu espaço. Os princípios de ética cívica formam um mundo fechado em formas que se afirmam em necessidades materiais e, por isso, são sempre verdades dentro de um círculo histórico e falsas fora dele. Por isso, a Democracia é e será um conceito abstrato, sem realidade política na nova cultura americana.”[23]

Nayib Bukele não representa uma exceção ao ideal democrático: é sua negação fecunda. É o homem de aço que surge subitamente quando as constituições de papel colapsam. Sua figura não responde à utopia liberal, mas à lei natural das massas intertropicais, incapazes — segundo o autor – de construir civilidade sem verticalidade. Bukele é, assim, o reflexo histórico de um continente — e aí, naturalmente, inclui-se El Salvador — cuja alma não soube ser cidadã e cuja história não engendrou instituições, mas sim homens fortes: tiranos, caudilhos e ditadores organizadores.

“Os regimes que derivam dessa necessidade têm de obedecer à pressão espiritual da moral individual que integra o Estado e se formar de acordo com o meio físico, não por imposição de teorias nascidas ao calor de outro sol, enraizadas em terras distintas, aplicadas a homens de outro sentido moral e político.”[24]

O pensamento de Lamar Schweyer não busca “justificar” a ditadura, mas a vê como uma resposta biológica ao fracasso cultural da democracia liberal na América. Da mesma forma, o regime de Bukele não se baseia em um corpus ideológico sofisticado: trata-se de uma práxis adaptativa. A obediência não se exige pela lei, mas pelo resultado; a autoridade não se legitima tanto no voto, mas no grau de sua efetividade.

Aceitemos, pois, nossos equívocos: os erros sociais e políticos da Hispano-América, para além de seu suposto repouso em teorias sociológicas, não se corrigem com panfletos nem com ideias arcaicas. As desmistificações, em sua maioria, não serviram senão para embaralhar o juízo e agravar a catástrofe. As ditaduras organizadas — para o bem ou para o mal — mostraram ser, ao menos, o martelo inicial com que se pode endireitar o prego torto desses países desordenados. Não são cem, não! São duzentos anos de uma democracia insubstancial, incapaz de consolidar um rumo, e que se justifica, por meio de seus entusiastas, pela permissividade de ações que, mais cedo ou mais tarde, acabam por liquidar a nação – porque não é a emoção sincera de uma democracia, mas como essa democracia beneficia certos integrantes, partidos e grupos, por meio de liberdades que, mesmo existindo, não influem positivamente nos rumos pátrios. Pois para ordenar, é preciso apertar; e se se apertou, não foi com inteligência nem com visão. Impõe-se, então, não a violência cega, mas o mando lúcido: sejamos, pois, guardiões dessa direção suprema que guia, não que destrói; que forja, não que dispersa.

Durante um século estivemos vivendo essa verdade sem querer vê-la, aferrados desesperadamente a um sistema impraticável, que, na realidade, só existe nas Constituições.[25]

Bukele pode, então, ser entendido como um fenômeno darwiniano da política tropical: o mais apto para sobreviver em um ecossistema hostil às abstrações institucionais. Em lugar de um Parlamento deliberativo, um líder absoluto; em vez de uma justiça autônoma, uma vontade central que ordena.

Às vezes, o Cincinato não pode governar a terra amorfa, carente de unidade e de ordem, e deve erguer-se, como remédio orgânico, o César, o guarda, uma vez mais, para desgraça dos entusiastas das constituições e das ordens anódinas — afirma-se, outra vez, o César democrático: não como negação da democracia, mas como sua alquimia trágica, sua disciplina fundadora, seu aço necessário. Porque, onde o povo esqueceu o sentido de seu destino e o direito deixou de ser orientação, o mando se converte em pedagogia — e o César não impõe: organiza.

Em vez de uma democracia flácida e desagregadora, aço decidido e edificante.

Autor: José Alfredo Paniagua. Texto publicado na Idearium Caribe.

Traduzido por João Marcelo.

Notas:

[1] Manuel Pérez Vila, ed., Doctrina del Libertador, Caracas, 2009, p. 130.

[2] Laureano Vallenilla Lanz, Cesarismo democrático y otros textos, Caracas, 1991, p. 162.

[3] Simón Rodríguez, Inventamos o erramos, Caracas, 2004, p. 407.

[4] Simón Rodríguez, Sociedades americanas, Caracas, 1990, p. 88.

[5] Simón Rodríguez, Obras Completas, Caracas, 2016 p. 54.

[6] Esta economia não se refere exclusivamente ao campo financeiro, mas sim à utilização eficiente de qualquer recurso (tempo, esforço, materiais, etc.) necessário para executar a operação de acordo com a disciplina.

[7] Rodríguez, Sociedades americanas, p. 11.

[8] Bukele ordena cerco militar ante retorno de pandilleros. Véase: https://www.dw.com/es/bukele-ordena-cerco-militar-ante-retorno-de-pandilleros.

[9] Ponen cerco militar en Chalatenango y reportan primeras dos capturas. Véase: https://www.laprensagrafica.com/elsalvador/Ponen-cerco-militar-en-Chalatenango-y-reportan-primeras-dos-capturas-20240325-0022.html.

[10] La megacárcel de por vida para los pandilleros de El Salvador. Véase: https://andina.pe/agencia/galeria-la-megacarcel-por-vida-para-los-pandilleros-de-salvador-24768.aspx.

[11] Vallenilla Lanz, Cesarismo democrático y otros textos, p. 113.

[12] José Santos Chocano, Idearium tropical: Apuntes sobre las dictaduras organizadoras y la gran farsa democrática, Lima, 1922, p. 14.

[13] Vallenilla Lanz, Cesarismo democrático y otros textos, p. 230-231.

[14] Chocano, Idearium tropical, p. 25.

[15] Ibid., p. 25.

[16] Ibid., p. 20.

[17] César Zumeta, El continente enfermo, Caracas, 1961, p. 42.

[18] Ibid., p. 21.

[19] Ibid., p. 41.

[20] Alberto Lamar Schweyer, Biología de la democracia: Ensayo de sociología americana, La Habana, 1927, p. 9.

[21] Ibid., pp. 141-142.

[22] Pérez Vila, Doctrina del Libertador, p. 73: “Nosotros somos un pequeño género humano; poseemos un mundo aparte, cercado por dilatados mares, nuevo en casi todas las artes y ciencias aunque en cierto modo viejo en los usos de la sociedad civil”.

[23] Ibid., p. 119.

[24] Ibid., p. 142.

[25] Ibid., p. 142.

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